24 fevereiro 2007

Receita: como não se fez uma mulher

Folhear de novo este livro do Mestre Cozinheiro, que ensinava as mulheres “que entravam na vida pelo laço sublime do casamento”, como se até aí não tivessem tido vida, fez-me lembrar como estas mensagens era importantes para as mulheres da geração das minhas avós, da minha mãe e até ainda para as da minha geração. Estas mensagens passavam de mães a filhas, de avós a netas, da mesma forma que se herda o ouro da família, quando o havia. Lembro-me de achar quando era miúda, e até mesmo depois adolescente, que sendo eu rapariga, era bonito e importante saber cozinhar e aprender a “governar uma casa”. Valorizava, e ainda valorizo, o espaço aconchegante da casa, a decoração, receber os amigos e amigas, cozinhar repastos, a intimidade possível na Domus. Mas lembro-me também da ambivalência que sentia em relação a isso, pois se por um lado fui aprendendo e desenvolvendo um verdadeiro gosto pela casa e pela cozinha, por outro comecei a rejeitar tudo o que estava relacionado ao que durante séculos se associou à mulher. Queria ser outra mulher, às vezes até queria era ser homem, pois tinha muito mais graça e eles podiam fazer muito mais coisas que as mulheres. Ia ensaiando coisas que antes eram consideradas só para homens, como o sair à noite sozinha, sair à aventura, ir acampar com os amigos, gostar de matemática e de manuais de instruções, etc. Depois fui descobrindo que podia fazer muitas coisas que queria sem deixar de ser mulher, umas vezes pensando essas fronteiras que nos eram impostas entre o masculino e o feminino, outras esquecendo-as por completo e ensaiando só o ser pessoa. Às vezes aborreciam-me as minhas amigas mulheres quando passavam a vida a falar do amor e dos amores e então só queria estar com os meus amigos homens, onde era possível discutir filosofia e política. Outras vezes aborreciam-me os amigos homens pois eram muito esquemáticos e racionais nas conversas e divertia-me mais com as amigas mulheres que eram muito mais hábeis a ler os comportamentos humanos, a adivinhar o que estava latente por trás dos ditos, a analisar o quotidiano.

Com o tempo, as diferenças entre os amigos e as amigas foram-se diluindo e com estes encontros e ambivalências, fui-me ensaiando e construindo através de tradições mantidas, quebradas, reajustadas, negadas, eliminadas e inventadas, e agora defino-me neste meu corpo carregado de um sexo que reconheço pela sua evidência genital como sendo de mulher, assumo-me como bissexual apesar de que toda a vida só namorei com homens, e emocionalmente, a minha única certeza é que não sou mais do que pessoa, cada vez mais pessoa.

1 comentário:

D. Ester disse...

estou a ver que os ares do norte são inspiradores. Venham mais!!