Lembrava-se de ver aquele relógio na palma da mão grande e amável do avô. Era um relógio de bolso, com uma correia não muito grossa prateada. O avô levava muitas vezes a mão ao bolso para saber as horas e todos os dias lhe dava corda. Os ponteiros marcavam o tempo com precisão, as horas eram importantes, a pontualidade das coisas diárias que lhes marcavam a existência era respeitada, o hoje era igual a ontem e seria igual à amanhã. Quando as avós eram vivas e quando eram muitas pessoas em casa, parecia que tudo se organizava melhor, talvez por serem muitas pessoas o trabalho do dia a dia era melhor distribuído. Às avós competia a comida e a ritualização dos dias e horas certos para cada coisa. Tinham a vida ligada aos tachos, ao alimento do corpo, às tradições do espirito enquanto os homens se consumiam na engrenagem fora da casa.
Lembrava-se também de ver esse relógio, anos mais tarde, nas mãos suaves da mãe. Nessa altura, os dias já não eram uns iguais a outros, as avós já não estavam ou já não podiam cozinhar, a mãe e o pai trabalhavam e ela e os irmãos participavam pouco da dinâmica necessária para fazer que a casa funcione. A mãe azedava em cada comida que fazia, em cada máquina de roupa que punha, estendia, dobrava e guardava. O cansaço da mãe era constante e apesar de lá fora ser uma reconhecida profissional, cá dentro as ideias filosóficas e políticas sobre o mundo eram mais deixada para quem tinha mais tempo para elas, os homens.
O relógio depois passou a estar pendurado na parede da sala de jantar por uma fita de veludo azul, e na mesa onde se reuniam xs amigxs do pai e da mãe, guarda a memória dos homens em alegres discussões, ensaiando as suas capacidades retóricas e opinativas, discutindo os destinos do país e do mundo, enquanto as mulheres, licenciadas e profissionais como eles, acabavam os preparativos para o almoço, e depois recolhiam, limpavam e organizavam tudo. Na cozinha, nessa solidariedade ou destino implícito que se tece entre mulheres, contavam-se da sua vida, dxs filhxs e amigxs comuns e discorriam sobre as ligações sociais e emocionais da vida quotidiana. Lembrava-se de estar entre a mesa da sala de jantar e a mesa da cozinha, entre os homens e as mulheres, e de gostar de estar numa e noutra. Talvez sentisse uma maior inclinação para ficar mais tempo na mesa dos homens e divertir-se com o seu humor bonacheirão e inteligente, sentia-se, sem se aperceber disso, com mais prestigio quando estava entre o discurso racional e cientifico e não entre os tachos e as conversas da vida. Mas ao mesmo tempo não percebia porque não se juntavam os dois universos, porque é que aquelas mulheres que falavam tanto entre elas não eram capaz de falar da mesma maneira quando estava toda a gente junta na mesa da sala de jantar. Imaginava muitas vezes como seria ser homem e às vezes sentia-se desconfortável por gostar de ser mulher, por sentir prazer quando se ocupava com as tarefas da casa e com as emoções da vida.
Não sabia porque se tinha lembrado de tudo isto. Talvez porque encontrou a caixa bordeaux e irrefletidamente abriu-a e encontrou aquele relógio, já sem o vidro, a fita de veludo azul gasta e esgarçada, sem ponteiros, há muito tempo sem estar nas mãos de ninguém. A ausência do seu tic tac indicava que a cada segundo o passado é um lugar habitado, sem fronteiras definidas com o presente nem com o futuro. Fechou a caixa, pôs o casaco e foi-se embora. Deixou o relógio perder-se no tempo. Tic.