Continua o relato da A. na série The Dirty Boulevard.
Um dia ganhei coragem e resolvi ligar para o número que encontrei na lista telefónica e que estava atribuído aos NA. Atendeu-me uma máquina e deixei recado. Fui contactada no próprio dia, à noite, por uma voz feminina e simpática. Marcámos encontro para o dia seguinte.
Depois, começaram as apresentações. Abriu o moderador-veterano NA, “Olá o meu nome é F. e sou toxicodependente em recuperação há 20 anos”. Responde a plateia: “Olá F.”. Chegou a minha vez e lá balbuciei o mantra. Tive dúvidas na palavra recuperação, estava tão angustiada que sabia que mal pusesse o pé fora daquela sala, iria consumir.
De acordo com as regras, ninguém era obrigado a partilhar se não sentisse vontade de o fazer, e se alguém novo no grupo - o meu caso - o quisesse fazer, teria que esperar e fazê-lo no fim. Mantive-me calada. Não tinha nada para dizer, mas ouvi com muita atenção o que me disseram:
O executivo, pai de família, consumidor compulsivo e arrependido, a loura de cigarro pendurado nos lábios a relatar uma orgia de sexo e cocaína e a rematar no fim ‘e sabem que mais? Gostei’, o mecânico de automóveis obeso que desatou num pranto de lágrimas e arrependimento, a jovem da margem sul tatuada e a transbordar um optimismo de plástico, dois tipos com ar carcomido e calados, braços cruzados, fumando cigarro atrás de cigarro, com a cabeça em mais uma dose de cavalo e muito pouco na sessão, um tipo adormecido de um sono opiáceo no fim da mesa.
A sessão terminou e culmina com um abraço entre os participantes. Calha-me na rifa o mecânico obeso que quase que me esmaga contra o seu peito e me encharca com o seu suor e lágrimas. Saio de lá de dentro, num misto de repulsa e confusão.
Pela minha recém-amiga frequentei mais sessões e fui variando os locais, regra geral, salas em igrejas. No entanto, nunca consegui aderir à filosofia NA e acreditar naquela proto-religião, feita de porta-chaves a assinalar os dias-meses-anos de recuperação, e de mantras e de confissões duvidosas. Não considero que este passo tenha sido decisivo na minha recuperação. Mas foi um dos muitos passos que dei, numa longa caminhada feita de avanços e de retrocessos. (...) Mas este não é um juízo de valor, não tenho nada contra os NA, simplesmente não funcionou comigo.
Valeu, contudo, o facto de ter conhecido a minha amiga. Há uns anos, telefonei-lhe. Já não se lembrava de mim, e foram precisos uns bons 10 minutos de conversa até me conseguir situar. Contei-lhe que me tinha safado e que me tinha lembrado dela, que lhe queria agradecer o que tinha feito por mim. Quase que a posso imaginar do outro lado da linha. A sorrir.
4 comentários:
Olha, minha querida, isto é uma coisa da tua autoria, não é? Gostei muito, muito.
olha isabela, a autoria importa o quê?
gostei muito que tivesses gostado muito.
e que sirva para alguma coisa, assim é a vontade destas 'vozes'.
um abraço grande
:)
Autorias à parte, é bom ver que se conseguem passar as avenidas sujas. E, já agora, que seja a sorrir.
passar as avenidas sujas não perder o norte, nem o sul. Mais uma bonita posta oito
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