Num banco de dois lugares eu e um senhor de 80 anos que parecia ter 60. De pé, junto ao nosso assento, um tipo de quarentas, jeans rasgado de cima a baixo e uma camisola que lhe deixava ver o umbigo, com um headphones por onde ele e toda a gente ouvia rock a abrir e uma rapariga que devia ter 30 mas parecia de 40 e que falava ao telemóvel com voz estridente e despachada. Nos instersticios, magotes de gente a tentar chegar a algum sitio em dia de greve do Metro. O senhor levanta-se abruptamente, pousa todos os seus papéis no banco põe-se a procurar o seu bilhete. O autocarro curva para um lado, curva para o outro e o senhor tambaleia para um lado, tambaleia para o outro. Eu em sobressalto atenta a ver se o podia agarrar, o tipo do rock e a rapariga também, os 3 a fazer um cordão de segurança à volta do senhor, algumas pessoas à nossa volta também atentas ao iminente desiquilibrio do senhor. Depois de muito procurar ao ritmo das curvas, arranques e travagens, o senhor resolve ir até ao motorista contar-lhe a sua situação, a rapariga dispõe-se a ir com ele e resolver já tudo, não se preocupe, vai ver que tudo tem solução, tudo isto sempre em voz muito alta, o que ajuda a que todo o autocarro já esteja inteirado da situação do senhor e participe também na missão “à procura do bilhete perdido”. Entretanto o senhor encontra o bilhete, que afinal nunca tinha saído do bolso das calças e senta-se de novo ao meu lado, contente.
Depois de um minuto de contentamento colectivo, ouve-se: pois, hoje em dia as pessoas já não estão dispostas a ajudar ninguém, e começa-se a dissertar sobre esta certeza agora colectiva. E o senhor ajudado concorda, agora anda tudo muito individualista, já ninguém ajuda ninguém. A rapariga estrondosamente prestável, diz: o que me consola é o meu paizinho que me diz, ó filha, tu és uma santa!, tens um lugarzinho no céu à tua espera. O senhor conta uma desgraça recente, o meu carro avariou numa estrada do algarve e ninguém parou, é inacreditável. Mas num momento, fica em silêncio, pára, pensa e diz: mas a verdade é que eu também não pararia, a gente sabe lá, hoje em dia há tanta gente a querer fazer mal, ainda outro dia contou-me um vizinho meu que parou o carro na autoestrada… e continua com o tema da desgraça em que está este mundo.
Chega a minha paragem, desço do autocarro, e lá dentro fica o senhor com o seu bilhete no bolso, a rapariga despachada e alma caridosa com lugar no céu, o rapaz do rock que mais coisa menos vai precisar dos serviços da Sonatone e mais outras tantas pessoas solidárias que também procuraram o bilhete ou estiveram com atenção para o senhor não cair, a falar da desgraça em que está este país, o mundo, ninguém ajuda ninguém.
2 comentários:
crónica de vidas na cidade em tempos de pouco dinheiro e ainda menos esperança.
Hoje está nevoeiro. Será que é hoje que o Sebas volta de vez?
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