Continua o relato (muito livre) da A., que sempre teve a mania que era valente. E era mesmo. Ou ainda é.
Eu subia todos os dias aquela rampa, uma rampa que parecia infindável, mas que representava a Meca para mim. Chegar até lá era um acto heróico, dada a inclinação e a minha condição fisica. Mas chegava sempre.
O B. (o chefe) estava sempre atento à minha chegada e fazia questão em diferenciar o meu tratamento em relação aos restantes: um gajo bruto como as casas, boçal e taberneiro, mas que fazia questão e gala em tratar-me bem. Tudo isto porque um dia me deram uma banhada e eu não me deixei ficar. Cheguei, momentos depois, furiosa, e enfrentei um gajo que, para me chatear, sacou de uma ponta-e-mola, colou-a ao meu pescoço, e eu mesmo assim mandei-o para todas as partes que me ocorreram, que-eu-não-tenho-medo-de-ti-eu-faço-te-a-folha e etc. A história correu pelo bairro, mas no outro dia lá estava eu, como se nada fosse. E eles de olhos ainda mais esbugalhados que o habitual, 'dasse que a gaja tem tomates'. Nunca mais me chatearam desde esse dia e comecei a aparecer lá sózinha a qualquer hora do dia ou da noite, fizesse sol ou chuva, frio ou calor. Tinha ganho o respeito por entre a malta do dirty boulevard.
Este espisódio marcou, então, o começo do tal tratamento preferencial. Se a 'cena' ainda não tinha chegado, mandavam-me esperar num café: "chavala, aguenta ali e bebe um café, que depois o A. vai lá chamar-te, não te preocupes, a cena é bem aviada para ti. A gente sabe que tu és certinha e anda aqui muita bófia". E assim era. Era realmente bem aviada e as banhadas nunca mais tiveram lugar.
Dando um salto enorme no tempo, o último dia em que fui ao dirty boulevard, decidi comunicá-lo ao B.: "sabes, hoje é a última vez que aqui venho. Não me vais ver nunca mais". Não trocávamos muitas palavras, mas naquele dia ele dissse-me: "Ai é?". "É pois". "Então boa sorte, miúda. Tu és valente". Apertámos as mãos com força. Eu cerrei o meu punho e pousei-o no coração. Ele sorriu.
Desci a rampa com duas quartas no bolso, sabendo que eram as últimas que ia consumir. Ardiam-me nos bolsos como brasas e palpei-as várias vezes para saber se eram concretas e reais ou se tudo aquilo não passava de um sonho. Eram, de facto, concretas e reais e a despedida foi muito triste e, como sempre, soube a pouco. Mas eu estava mesmo decidida, numa daquelas decisões que representavam todo o culminar de um processo de decisões falhadas e adiadas. Fui o caminho todo a repetir: 'nunca mais nunca mais nunca mais nunca mais...'.
Naquele dia desci a rampa sem olhar para trás. A certeza do que queria fazer com o resto da minha vida tinha - finalmente- chegado: nunca mais subi aquela rampa. Foi a decisão mais sensata que alguma vez tomei. É possível tomar decisões dessas. Eu sou a prova disso".
P.S. O mais impressionante é que não consigo ter raiva do B. Antes, sinto pena. Imagino-o ainda no cima da ladeira a controlar os seus vendedores, a bófia, a cientela sem dinheiro, a desgraça que trazia quotidianamente presa a si e que lhe deve, muito provavelmente, ter custado muitas infelicidades.
Eu subia todos os dias aquela rampa, uma rampa que parecia infindável, mas que representava a Meca para mim. Chegar até lá era um acto heróico, dada a inclinação e a minha condição fisica. Mas chegava sempre.
O B. (o chefe) estava sempre atento à minha chegada e fazia questão em diferenciar o meu tratamento em relação aos restantes: um gajo bruto como as casas, boçal e taberneiro, mas que fazia questão e gala em tratar-me bem. Tudo isto porque um dia me deram uma banhada e eu não me deixei ficar. Cheguei, momentos depois, furiosa, e enfrentei um gajo que, para me chatear, sacou de uma ponta-e-mola, colou-a ao meu pescoço, e eu mesmo assim mandei-o para todas as partes que me ocorreram, que-eu-não-tenho-medo-de-ti-
Este espisódio marcou, então, o começo do tal tratamento preferencial. Se a 'cena' ainda não tinha chegado, mandavam-me esperar num café: "chavala, aguenta ali e bebe um café, que depois o A. vai lá chamar-te, não te preocupes, a cena é bem aviada para ti. A gente sabe que tu és certinha e anda aqui muita bófia". E assim era. Era realmente bem aviada e as banhadas nunca mais tiveram lugar.
Dando um salto enorme no tempo, o último dia em que fui ao dirty boulevard, decidi comunicá-lo ao B.: "sabes, hoje é a última vez que aqui venho. Não me vais ver nunca mais". Não trocávamos muitas palavras, mas naquele dia ele dissse-me: "Ai é?". "É pois". "Então boa sorte, miúda. Tu és valente". Apertámos as mãos com força. Eu cerrei o meu punho e pousei-o no coração. Ele sorriu.
Desci a rampa com duas quartas no bolso, sabendo que eram as últimas que ia consumir. Ardiam-me nos bolsos como brasas e palpei-as várias vezes para saber se eram concretas e reais ou se tudo aquilo não passava de um sonho. Eram, de facto, concretas e reais e a despedida foi muito triste e, como sempre, soube a pouco. Mas eu estava mesmo decidida, numa daquelas decisões que representavam todo o culminar de um processo de decisões falhadas e adiadas. Fui o caminho todo a repetir: 'nunca mais nunca mais nunca mais nunca mais...'.
Naquele dia desci a rampa sem olhar para trás. A certeza do que queria fazer com o resto da minha vida tinha - finalmente- chegado: nunca mais subi aquela rampa. Foi a decisão mais sensata que alguma vez tomei. É possível tomar decisões dessas. Eu sou a prova disso".
P.S. O mais impressionante é que não consigo ter raiva do B. Antes, sinto pena. Imagino-o ainda no cima da ladeira a controlar os seus vendedores, a bófia, a cientela sem dinheiro, a desgraça que trazia quotidianamente presa a si e que lhe deve, muito provavelmente, ter custado muitas infelicidades.
2 comentários:
Na realidade, o mais impressionante é saber o quanto existe de nós dentro de cada um de nós mesmo que aparentemente possa não parecer, a força, a vontade, a decisão, a luta, tudo.. valente A. Mais uma grande posta. o desejo que chegue a outros que partilharam as mesmas estradas...
Gosto desta série. A A. é mesmo valente, não só por ter feito frente ao outro, mas por ter feito frente à vida.
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