Tenho saudades dos dias em que me sentava ao teu colo e tu, sem admitires que podíamos ser em tudo diferentes, me obrigavas a copiar de olho os desenhos das capas dos cadernos. Eram os Meninos Rabinos os das capas dos cadernos, lembras-te? E o meu insucesso estampado na tua desilusão. Tenho saudades de quando nos penteavas a preceito, a mim e à minha irmã, ou não nos penteando, e nos fotografavas enfeitadas de flores ou de colares de pedras falsas, verdes e cor de rosa.
Passaram tantos anos e tu sem nunca me dizeres "amo-te" e eu sem nunca te dizer "amo-te".
Lembro aquela vez em que não tinhas roupa lavada para que eu e a minha irmã fossemos à praia, e esta é a única explicação que aceito, e em que nos convenceste que em Espanha toda a gente ia à praia com aquela vestimenta a que nós chamávamos camisa de dormir. E fomos. Eu sempre cheia de vergonha mas fui. Só tu para me fazeres exibir uma camisa de dormir em plena Praia Grande! E depois da praia, eu invariavelmente escaldada, passavas-nos no corpo álcool canforado, com propriedades calmantes e refrescantes que só tu sabias. Porque nunca te disse, como não te disse que te amava, mas a mim pareciam-me agulhas.
Tenho saudades da tua música sempre a tocar e de saber que nunca estavas lá, de onde a música saía, porque te deslocavas como os gatos e subias as escadas sempre sem ninguém dar por isso. Se quisessemos encontrar-te, o melhor era usarmos o olfacto e detectarmos de onde vinha o cheiro a cigarros que comias e que bebias como bebias café.
Tenho saudades das tuas mãos que raramente tocaram as minhas, pelo menos não a tempo de eu o poder recordar. Mas as tuas mãos são em tudo iguais às minhas! Agarravam a vida e os livros e o volante do carro que te herdei da mesma forma que as minhas agarraram as tuas a poucos dias de desistires de me querer.
Ensinaste-me quase tudo o que sei e muito mais quiseste que eu aprendesse, sem sucesso. Mas ensinaste-me aquilo que para mim é fundamental, a lealdade.
Tenho saudades das tuas mãos que raramente tocaram as minhas, da tua música, dos teus discursos ateus viscerais, das nossas discussões por convicções diversas, das vezes em que não me disseste que me amavas e das vezes em que, a caminho do fim, eu tive coragem de te chamar "nomes maricas" e de te dizer "amo-te".
Tenho saudades tuas, pai.
3 comentários:
Que belo, meu Deus. Meu Pai, meu amor.
um abraço daqui à china.
ai minha querida, nem digo nada porque tu sabes tudo o que te quero dizer
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