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27 março 2009

Insana

Chegar a casa e encontra-lo. De início, uma mera coincidência. Um acerto de horas de chegada coincidentes, um olá alheio ao qual se juntava um sorriso despreocupado. Com o tempo a chegada foi alterando o seu ritual, começou por tornar-se mais demorada. Os 'olás' estenderam-se em conversas circunstanciais, acusatórias de uma vontade reprimida em ficar. Ficar mais um pouco ali, no meio do corredor, na cozinha ou na entrada. Não interessavam as palavras ditas, interessava estar ali, a olha-lo. Depois, as palavras vestiram-se mais prolongadas, mais sentidas. Tomou lugar a partilha e despiram-se os sentimentos. Um a um, devagar, com tempo, até que nada restava a dizer. Até que um simples olhar bastava para dizer tudo o que respirava por baixo da nossa pele. A mágoa por alguém que me magoava tornou-se também a sua mágoa, a alegria dos momentos de um e de outro tornou-se indistinguível, o interesse pelas novidades ocasionais na vida de ambos tornou-se uma só.
Até chegarmos aquele momento. Aquele momento em que, eu e ele, deitados na cama, abraçados um ao outro, ignorávamos as mãos que iam desenhando desejos na nossa pele. O momento em que distraídos, deixávamos fugir as nossas carências. E deliberados, reprimíamos o erro iminente do abraço que ia crescendo cada vez mais imperioso. Um abraço que se ia tecendo na ânsia de um encontro de lábios, de um choque súbito de pele desnuda, de dedos ofegantes por descobrir todas as texturas da pele, de uma vontade de entrar dentro um do outro, vorazmente até não haver mais nada. Até ser só eu e ele, num compasso ritmado pelo fulgor mecânico do sexo e dos nossos corações finalmente despidos. Mas naquele momento, eu e ele, deitados na cama, abraçados um ao outro, ignorávamos continuamente este impulso de posse. O vulto do erro crescia no monólogo que ia decorrendo na minha cabeça. A cedência perante a carência que corroía o meu corpo, fazia-me querer ir mais longe, fazia-me querer mais. Todavia, a fuga dos meus olhos no encontro com os seus era uma clara delatora. O que eu queria naquele momento era atenção, era sexo, era uma breve sensação de pertença. E isso era errado, porque naquele momento, eu e ele, deitados na cama, abraçados um ao outro, não éramos mais estranhos, não éramos um simples engate de uma qualquer noite. Éramos eu e ele, companheiros de casa, companheiros de graça, de desgraça, de amizade, de amor e de bem querer.
Por isso, desfiz o abraço, dei-lhe um beijo na testa e disse até amanhã.
Voltei para o meu quarto, deitei-me, pousei a cabeça na almofada e encolhi-me. Encolhi-me até parecer uma concha, abraçada sobre mim mesma em posição fetal. Como se fosse ainda criança e o mundo e as pessoas do mundo não fossem um mistério tão difícil de compreender. E enquanto me adormecia, repetia os porquês que me impediam de me entregar nos seus braços. E na verdade, sabia-os tão bem. Surgiram-me tão claros, tão lúcidos na clarividência do amor que ainda sinto por ti. Do amor que ainda se esconde em todas as partes do meu corpo, que ainda te aguarda, humilhado, amedrontado, reprimido. Este amor que tenho por ti que insiste em permanecer, que assombra, que me impede de ceder perante a carência. Sei-o tão bem, é o amor que te tenho que me impede. Porque não interessa a quem ofereço a minha carência, não interessa a cara, o toque, o olhar, o beijo, o sexo que cresce dentro de mim. É como se fossem todos tu. Sempre tu. Em tudo. Mais esse teu silêncio.
Incomoda-me o teu silêncio, esse silêncio de quem já não olha, não fala, não ouve e não sente. Incomoda-me sobretudo, esse teu amor. O amor que me juraste verdadeiro e que agora é nada.

29 janeiro 2009

Diário de demência

Às vezes custa-me lembrar-te. A distância que me impuseste torna-te numa memória longínqua cada vez mais difícil de avivar. Como se na verdade nunca tivesses existido, como se fosse sido eu a inventar-te num rasgo de egoísmo de quem molda um amor à sua medida.
A tua falta mói-me. Em dias iguais a tantos outros, em dias bons em que tudo parece ser estranhamente fácil, em dias maus em que tudo parece ser estranhamente difícil ou em dias piores em que tudo parece horrivelmente insuportável. Em todos os dias, não interessa qual, tu estás lá. Na imagem que assalta a película dos meus olhos no primeiro abrir da manhã, na comichão impertinente atrás da orelha, nas pessoas desconhecidas que me cruzam na rua, nos comboios que corro para apanhar, nas gotas de água que caem do chuveiro, por baixo da minha almofada quando adormeço. És sempre tu, em tudo. És esse fantasma que construí à falta de mais com que te pintar. Pinto-te com pedaços soltos de mim, aqui e ali. Mas já não és tu, já não sei quem és. E a falta encoberta que marcas nos meus dias é falsa, é demente. Custa-me até lembrar-me da tua cara, dos teus olhos húmidos que diziam que me amavam enquanto crescias dentro de mim, dos teus bons dias ou da tua voz. Tudo parece um delírio, uma alucinação de noites de álcool a mais na conta. Na verdade tu nunca exististe. Não te posso cobrar o tempo que não me deste porque tu és mentira e eu sou demência.