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18 maio 2010

O melro que assobiava Chopin (uma história verídica)


Eis a história da minha desgraça: o meu piano foi afinado hoje e – claro! – fiquei logo cheia de vontade de estudar! Estava eu a verificar a afinação, quando reparo num passarinho, provavelmente caído do seu ninho. Lá espantei os gatos mais de mil vezes, com a ajuda da minha filha. Depois, à falta de melhor, enfiei-o num transporte de gatos. Entretanto achei que o bicho podia morrer de frio, e pu-lo dentro da casa do piano.

As crianças enfim alimentadas e a dormir, e eu regressada ao estudo. E não é que o safado já tinha conseguido sair do transporte?! E assim o encontrei, a piar como se não houvesse amanhã. À falta de um conta-gotas, deixei-lhe água numa tetina de biberão (que o bicho, aliás, achou muito interessante). Dei-lhe pão e abriu tanto o bico que achei que me levava o dedo. Mas agora já não come mais. Será que vai morrer de indigestão?!

Fiz-lhe uma cama numa caixa aberta de cartão, com um babete antigo, relva e uns pauzinhos, mas a criatura foi para outro canto dormir. Depois, começo a estudar, e ele a piar… Peguei no bicho e pu-lo em cima da cadeira, de modo a avaliar os seus progressos na arte de voar. Abriu as asas e… caiu.

Dou por mim a sentir-me (ainda mais) culpada por estar a fazer barulho, não vá o malvado morrer ao som de Chopin. Vou tentar o silent mode, vá lá que o meu piano tem a opção de se transformar num piano eléctrico – nunca se sabe quando vai haver um passarinho cardíaco a precisar de ajuda! (Segunda tentativa de estudo... Raio do passarinho). E quando dei por mim a desejar-lhe boa noite achei o cúmulo, isto não pode ser normal!

Chamámos-lhe Fallen.

14 dezembro 2009

Fantasias de Natal!

Numa manhã bonita fria e ensolarada, como a de hoje, Martinha viajava na parte de trás do carro dos seus pais. Iriam fazer a primeira incursão às prendas de Natal no Colombo e em seguida ao Freeport, porque nesta época ninguém se importa se aquela merda está legal ou não.
Tudo corria bem até que subitamente o papá de Martinha teve de fazer uma travagem brusca!!!!!!!!!!!! Hiiiiiiiiiiiiiiiiii!! À frente do carro atravessara a correr um rinoceronte com plumas cor de rosa que mais tarde se soube que tinha fugido do circo.
O pai de Martinha grita - Fodasse! Caralho! que o MDMA de sábado ainda me está a bater!
Imediatamente atrás do rinoceronte afoito vinham três porcas pretas anãs a persegui-lo (que derivado  à tatuagem que tinham na coxa esquerda suspeitava-se que tinham tido formação em contra espionagem na ex URSS) mais um caniche perneta que era Chef e mestre em Foie Gras. As porcas, ao contrário do que se possa pensar, eram muito asseadinhas pois o caniche perneta oferecia-lhes constantemente sabonetes para depois dos minetes, sim que o caniche era mestre nisso também pois era fruto de um cruzamento estranho entre um cão de lingua azul e um gibão, o que o fez ter uma lingua azulinha bastante proeminente.
Uma das porcas que usava muitas vezes o sabonete era casada com o anão contorcionista mas estava apaixonada pelo rinoceronte que por sua vez era gay e gostava do urso.
O urso era faquir e bazou para o Cazaquistão à procura de um rotweiller mestre em bdsm.
Esta malta foi toda atrás do rinoceronte porque ele é que tinha a chave da roullote das farturas. Na roullote das farturas dormia o dono do circo com uma bruta ressaca de um licor azedo que o urso lhe enviara. Sem dono não havia bilheteira...e depois como é que o coelhinho ia com o estupido do palhaço e o cabrão do pai natal no 28 ao circo??

18 novembro 2008

Algumas postas depois, finalmente, Juraci - a vidente contente - O desfecho.

Se não tivesse a certeza de estar em Istambul, podia jurar que estava na feira do relógio, tal era a quantidade de gente que regateava aos gritos, a oportunidade de arranjar um taxi que os levasse até ao local do seminário. Kasparov, o buldogue estava ao seu lado com o ar mais enjoado do mundo depois daquelas horas aos trambolhões no compartimento de carga do avião. A senhora do guichet Nº 5, de lábios carnudos, vermelhos e peruca à Marylin Monroe perguntou-lhe se não tinha nada a declarar. Juraci podia ouvir as conversas nos outros guichets do lado. Num deles, alguém declarava que tinha um marido para a troca, outro perguntava se seria viável montar um esquema de fuga ao fisco e quantos anos conseguiria viver no luxo absoluto sem ser catado. Estas pessoas estavam confusas. Os funcionários do aeroporto permaneciam calmos e direccionavam as pessoas para o seminário, onde para além do curso, também estavam instaladas tendas de atendimento ao público. Juraci limitou-se a apresentar o documento que conprovava o registo no seminário e enfiou uma nota de 50 euros na manga da blusa da Marylin para ela lhe chamar um taxi à parte. Juraci queria ir para o Norte de Istambul em direcçao às margens do mar Negro onde o professor Uganbanga a esperava. Ao seu lado, sentado no banco do taxi, kasparov acabava de vomitar mais uma peça de xadrês. Juraci tinha encontrado o cão assim na rua abandonado quando ele era ainda pequenito. Já sabia que alguém tinha lançado um feitiço qualquer ao cão e andava há anos a tentar quebrá-lo mas o máximo que tinha conseguido era que ele passasse a vomitar peças de damas e mal por mal, o xadrês sempre tinha mais prestígio. Desta vez, Kasparov vomitara uma rainha, seguido de um grande arroto de satisfação e Juraci não pode deixar de sorrir encararando o fenómeno como um bom presságio.
Ali estava o professor à sua espera, de mão levantada a segurar um enorme cartão que dizia, "Welcome, Juraci - A vidente contente!". Juraci correu a abraçá-lo. Ele ria-se atrapalhado ao mesmo tempo que endireitava os óculos e corava. Juraci sempre tinha achado que ele podia ser um sósia de Woody Allen, não fosse ter quase dois metros de altura e ter a mania que era imortal. Depois de um jantar luxuriante em que mais uma vez, a química que Juraci sabia ter com Uganbanga se tinha revelado, a conversa estava posta em dia e Uganbanga apresentou-lhe as novas bolas de cristal. O modelo "ver sem limites 6.5", não era nada menos do que tinha visto no folheto promocional. Juraci até sentiu que as lágrimas lhe vinham aos olhos. Uganbanga deixou-a ficar uns momentos sozinha para que ela pudesse fazer uma primeira previsão e levou Kasparov para outra sala onde pretendia lançar um contra feitiço ao pobre cão.
Juraci não sabia onde se havia de enfiar depois de ver o seu futuro estampado na nova bola. Ela e o professor casados e felizes, a viverem ali em Istambul, ele a traficar e ela a prever as maleitas do mundo. Era um amor antigo este deles os dois, que remontava há dez anos atrás quando Juraci lhe tinha comprado a sua primeira bola mas nunca concretizado porque Juraci não tinha querido deixar a pátria. No fim, acabara por casar com um activista que a tinha deixado em prol da luta contra o recente movimento do "bird porn" e que agora estava preso por ter sido apanhado em flagrande delito a mandar uma queca de binóculos, no meio do mato na zona de Mafra. Juraci desviou os olhos da bola. De facto, não havia mais nada que a prendesse ao seu país natal Quando Uganbanga surgiu a espreitar pela porta para saber se já podia entrar, Juraci lançou-lhe um olhar terno e Uganbanga soube logo ali que ela tinha decidido ficar. Kasparov correu para ela de contente. O cão não estava totalmente curado mas agora falava russo.

01 novembro 2008

Juraci - A vidente contente

Crónicas de uma vidente em crise temporária.

Lisboa - Istambul, com escala num país qualquer de nome impronunciável. A reboque, duas malas carregadas de profecias não cumpridas que somavam dez anos de vida e o seu buldogue Kasparov. O mestre em Istambul tinha sido muito claro ao telefone. Ou arrotava a maçaroca para fazer o seminário de "novas técnicas de vidência online" ou arriscava-se a perder de vez o grau de grão-mestre das artes e magias da vidência. Os tempos eram outros. Mas o que lhe fazia afliçao nem era isso porque à custa de ter previsto a catástrofe do casamento da D.Firmina, o ataque repentino de gota do Sr.Humberto ou o desaparecimento sórdido do caniche da D. Graça que morava rés-vés com o bairro chinês, entre outros tantos casos, tinha conseguido amealhar três caixas das grandes de bolachas sortidas em moedas de dois euros. O que lhe fazia aflição era o seu próprio divórcio e a morte prematura do seu papagaio que não tinha conseguido profetizar a tempo e horas.
Nunca pondo em causa as suas capacidades, Juraci - a vidente contente - podia jurar que o mal estava na sua bola de cristal pessoal, um modelo que o famoso Professor Uganbanga tinha jurado durar uma vida e outras tantas mas que afinal, ao final de um ano já lhe desfocava metade da verdade e que ao fim de três, deixara de lhe mostrar o futuro para lhe começar a mostrar somente o presente. E o presente de Juraci - a vidente contente - era sempre a mesma coisa. Fazer sessões atrás de sessões. Era como estar a ver repetições do Dallas no canal Rtp Memória. Tornava-se chato. Por isso, Juraci - a vidente contente - pretendia fazer o seminário e aproveitar para trazer de lá, o último modelo em bolas de cristal. O modelo "ver sem limites 6.5" que lhe garantia não só o acesso ilimitado ao futuro como lhe permitia já o acesso a alguns universos paralelos, para aqueles clientes mais exigentes que gostassem de saber, por exemplo, como seria a sua vida casados com a Pamela Anderson do Baywatch e coisas assim, e também a actualização automática dos upgrades. Era um sonho.

Não perca o próximo episódio das crónicas de Juraci - a vidente contente - em crise temporária e a sua chegada a Istambual para reencontrar o seu velho amigo, Professor Uganbanga, famoso e virtuoso vidente-mor e traficante de bolas de cristal.

10 abril 2008

Gloria

Saiu do seu país rumo a Benidorm, na esperança de um futuro melhor que se via difícil na terra que a viu nascer e onde a pobreza atinge a 2/3 da população. Queria conseguir um trabalho que lhe desse dignidade. Ao chegar foi assediada por todas as mafias que a queriam levar para a prostituição ou para ser “mula”, pois era branquinha e com olhos azuis, o que evita suspeitas numa colombiana. Começaram a ameaçá-la, a investigar sobre a sua família para a pressionar e só a deixaram em paz quando conseguiu um namorado, pois uma mulher que tem homem é outra coisa. Conseguiu trabalho como vendedora mas sempre em “negro”, sem direito a nada, trabalhava e aumentava a riqueza do país que a recebeu mas este só lhe dava um magro salário que mal lhe dava para pagar a casa que dividia com mais 4 famílias.
Disse para si mesma, como quem pela palavra faz realidade um sonho, em Barcelona vou conseguir! Chegou, calcorreou todas as ruas e deixou o seu cv em cada tenda com um anuncio Precisa-se Vendedora. Aos poucos dias foi chamada, aqui vamos dar-lhe um trabalho com tudo aquilo a que tem direito, vamos fazer-lhe um contrato. Trabalhava 11 horas por dia numa tenda de frutas, tinha que carregar os pesados caixotes das frutas, atender o público e marcar na caixa registadora os códigos numa língua desconhecida para si, fazer a limpeza da loja e tudo sobre as ordens da pessoa encarregada que dizia, mais rápido, isso não é assim, aqui só se faz como eu digo e mais nada. Ao quinto dia começou a sentir-se mal, sentiu a hérnia inflamada, queixou-se à colega de trabalho que só lhe deu como resposta, eu nunca fiquei doente, nunca pedi uma baixa, nunca. A febre aumentava. Foi ao centro de saúde, disse à médica que estava doente e que amanhã tinha que ir trabalhar, a médica receitou-lhe paracetamol mandou-a para casa e resmungou, eu também me sinto mal e amanhã também tenho que vir trabalhar. No dia seguinte ardia em febre, avisou que ia faltar ao trabalho nesse dia e foi ao hospital, diagnosticaram-lhe a hérnia inflamada, receitaram mais paracetamol e disseram-lhe para não fazer esforços. Nessa mesma tarde, recebeu em casa um telegrama da loja de frutas a dizer que estava despedida.
Gloria não perdeu o seu sorriso nem o brilho do seus olhos azuis. Continua a calcorrear as ruas, a deixar o seu cv em cada loja que apresenta uma promessa de trabalho, confia na sua boa estrela que diz sempre a ter ajudado em todas as dificuldades da vida. E sonha, um dia vou montar a minha própria loja e vou mostrar a toda a gente como se pode vender muito tratando bem a quem para nós trabalha.

24 outubro 2007

Em nenhures ninguém quer construir estradas

imagem aqui

Quando nasceu percebeu-se logo que era uma espécie rara e muito viçosa. Cedo, muito cedo, começaram a crescer-lhe as mais belas flores. Todos os dias floria de maneira diferente. Nasciam-lhe: orquídeas, flores de hibisco, begónias, brincos-de-princesa, rosas, tulipas, jarros, margaridas, agapantos, flores de madressilva, gerberas. Formavam-se filas para ver qual a flor que lhe tinha nascido. E ela floria. E ela encantava.

Um dia construíram uma estrada que passava por cima do sítio onde tinha nascido. Começaram a tomar a outra estrada. Deixaram de lá aparecer. Deixaram de lá passar. Deixaram de a admirar. Deixaram de a regar. Ela deixou de florir. Então, o fenómeno deu-se: transformou-se num cacto.

Agora mora no deserto vermelho. Tem por amigos uma joshua tree e um escorpião. De quando em vez também aparece uma rattlesnake muito venenosa. Falam pouco e vivem em harmonia no meio da imensidão. Em nenhures ninguém quer construir estradas.

05 outubro 2007

A torneira

Era uma vez uma rapariga que vivia numa casa muito velha. Uma noite acordou com a torneira a pingar. O barulho foi crescendo crescendo e invadiu-lhe os sonhos e o corpo. Sentia os pingos a correrem-lhe no peito ping, no lavatório ping, no carro encarnado onde viajava com o avô ping, nas pernas ping, no campo de girassóis que se transformavam em girafas ping, nas mãos que agarravam a almofada ping, na senhora velha com uma capeline azul que lhes ofereceu azeitonas ping.

Levantou-se e flutuou pela casa à procura de um sítio onde o ping não ping entrasse nos seus sonhos ping e no seu corpo ping. Pela janela ping viu a árvore grande ping do jardim ping. Ali ping estaria ping a salvo ping.

Levou a almofada consigo e trepou até ao ramo maior. Antes de adormecer reparou numa falha da madeira ao lado da sua mão esquerda. Lá dentro havia qualquer coisa que brilhava, talvez um garfo esquecido ou um diamante escondido, os tesouros guardam-se sempre em sítios improváveis.

Regressou ao campo de girafas que entretanto tomavam chá com o avô, enquanto a senhora de capeline azul regava um jarro com girassóis e sorria muito. A girafa mais alta largou a chávena e pôs-lhe na mão um diamante enorme e transparente. O frio fê-la acordar. Não era um diamante nem um garfo que estava na sua mão esquerda. Era uma torneira que tinha nascido no ramo da árvore onde dormia.

12 agosto 2007

O Jorge

Na porta de um dos apartamentos do meu prédio coabitam uma imagem de Nossa Senhora de Fátima com um autocolante que diz não à entrada da Turquia na União Europeia. Gente estranha, pensei eu quando vim para cá morar.

Descobri que quem lá vive é uma senhora com mais de 90 anos que anda sempre sozinha. Muito magra e tímida, encolhe-se toda quando alguém passa por ela, quando a cumprimento na rua não me responde - não me deve reconhecer fora do contexto. Passa muitas horas sentada num banco do jardim em frente ao prédio, gostava de saber no que pensa. Por vezes quando me responde aos bons dias sorri, e nesse sorriso descubro uma alegria quase infantil, e imagino-a de tranças a andar de baloiço. Presumo que a santa mãe seja dela, a declaração de ostracismo de um qualquer neto ou sobrinho.

Um dia vi-a entrar com um rapaz volumoso, moreno, bigode, com um ar malandreco e autoritário. Sem dúvida o autor das afixações, que entretanto tinham aumentado com a publicidade a um campeonato de kick boxing, onde se mostravam 4 galfarros em poses ameaçadoras e possantes. Informação sem dúvida utilíssima aos 8 inquilinos do edifício.

Quando estava a tomar chá em casa dos únicos vizinhos da minha idade descobri que a D. Madalena de seu nome não tem netos e que os autocolantes se devem ao Jorge. Eles vivem mesmo em frente dela e um dia o Jorge começou a aparecer lá por casa. De início a D. Madalena dizia que era o seu sobrinho, e passado uns tempos começou a referir-se a ele apenas como “o Jorge”. O rapaz começou a ser visita habitual.

A senhora que era assídua nos pagamentos do condomínio e seguro começou a ser menos pontual e a acumular dívidas. Um dia a falar com esta vizinha disse “sabe, comecei a ter umas despesas extra. O Jorge acha que eu devo ter telefone, TV cabo, internet... começámos a fazer umas viagens, que o Jorge diz que a vida é para aproveitar enquanto cá estamos... além do mais, coitadinho, precisou de fazer uma operação à vista e como ele não tinha dinheiro eu paguei-lhe. A vida é para aproveitar, sabe”.
Depois da operação à vista o Jorge começou a aparecer menos. A D. Madalena continua a passear sozinha. A vida é para aproveitar enquanto cá estamos.

27 julho 2007

Uma história exemplar

Era uma vez um rapaz. Era um rapaz qualquer, igual a tantos outros.

Um dia, acidentalmente, engoliu uma mosca.

Tempos mais tarde, a contra gosto, teve que engolir um sapo. Tomou um alkazeltzer para facilitar a digestão.

Outro dia, por curiosidade, resolveu engolir um coelho. Para o tirar de lá de dentro foi o cabo dos trabalhos, tiveram que chamar um mágico.

Mas nada a fazer, tinha tomado o gosto pela deglutição de animais. Começou a frequentar diariamente o zoo: nesse período engoliu um macaco, um koala, um pica-pau e até uma jibóia.

Depois passou a animais de porte maior: marcharam um tigre, um gorila, uma ema e um golfinho.

Bastava abrir a boca para se ouvir a selva lá dentro.

Um dia, resolveu concretizar o seu sonho supremo: engolir um rinoceronte. Assim o fez, mas aquele animal caiu-lhe mal. Ficou com azia e foi parar ao hospital.

Depois de libertos os animais, chamaram o psiquiatra de plantão. Prescreveu-lhe medicação e terapia. Passou a ir lá 4 vezes por semana.

Deixou de engolir animais, estava curado.

Morreu de tédio.

17 dezembro 2006

Insónia

Pouso o cachecol e as luvas em cima do balcão e peço as chaves do quarto.
- Boa noite, Sr. Fernando, que frio que está lá fora.
- Pois está. Sabe, o frio do Alentejo é muito diferente do da minha terra, é um frio fininho, por mais que nos aqueçamos entra-nos pelos ossos dentro.
O Sr. Fernando é dono de uma hospedaria no Alentejo. Oriundo de Seia, trocou a Beira pelo Alentejo e aí vive há muitos anos. O forte sotaque denuncia a sua origem, todos os ‘s’ são trocados por ‘x’. Continuamos a conversar sobre o tempo.
- Eu morava em frente ao mar, aquilo também não é fácil no Inverno por causa da humidade. Na minha rua, os carros estacionavam ao contrário para prevenir a corrosão da chapa. O termómetro não desce tão baixo, mesmo assim digo-lhe que há dias ou noites que também não são fáceis por aquelas bandas…
Despeço-me de boa noite. O dia foi longo e preciso de descansar. Subo as escadas, meto a chave na porta, rodo a maçaneta, entro no quarto, fecho a porta, pouso as chaves na mesa de cabeceira. Procuro imediatamente o comando do aquecimento e ponho no on. Vvvvvvvvvvvvvvvvv, faz a máquina, soprando um jacto de calor no quarto. Preparo a cama, tiro o cobertor de dentro do armário e as duas almofadas. Deito-me na cama ainda a tremer, depois de trocada a roupa. Acendo a televisão, faço um zapping pelos 4 insólitos canais portugueses, telenovelas e outra coisa qualquer, a tristeza de sempre, vou mas é dormir antes que deprima. Desligo a luz.
5 minutos depois - a porcaria do barulho do aquecedor e o corpo que não aquece, as almofadas são altas demais, tenho sede. Acendo a luz, desligo o aquecedor e bebo água por uma garrafa. Silêncio finalmente.
20 minutos depois – Porra, que não há maneira de aquecer. E por mais mossas que faça na almofada, esta não cede ao meu peso e intenção. Levanto-me, vou à casa-de-banho, saco as toalhas e decido que estas farão a vez da almofada. Ponho a fronha por cima para não sentir a textura do tecido.
50 minutos depois – Continuo a tremer de frio e a almofada substituta é dura. Puxo o cobertor para cima e coloco-o à altura da cabeça. Menos mal. No silêncio, distingo uma voz no quarto ao lado, provavelmente falando ao telefone. Não estou interessada na conversa mas percebo a palavra ‘5ª feira’. Ponho os dedos nos ouvidos, era o que mais me faltava prestar atenção a uma conversa que não é minha. Não sei como, finalmente adormeço.
3 horas depois – Acordo cheia de frio. Será o tal frio fininho de que falava o dono da hospedaria? E agora o que faço? Se puxo o cobertor que funciona de almofada não durmo por causa da almofada improvisada. Se acender o aquecimento não adormeço por causa do barulho. Vou fumar um cigarro enquanto decido, já acordei à mesma. Apanho o maço e o isqueiro e vou para casa-de-banho, ligo o extractor de fumo. Sento-me na retrete e penso. Penso que isto tudo é um disparate e que já devia estar a dormir há horas. Porque raio não adormeço? Não bastam as 3 horas mal dormidas no dia anterior? Não basta o que vi e ouvi hoje? Volto para a cama. Saco do meu último recurso. Deito-me de barriga para cima e aguardo o suave embalo do hipnótico: a cabeça teima em girar e girar e girar. 3 horas, depois volto a adormecer.
8:00 – toca o despertador. Desligo. Volta a tocar. Desligo. Volta a tocar. Desligo. Acordo em sobressalto, levanto-me de um pulo, tomo banho, arrumo tudo, saio do quarto e volto para o balcão onde me encostei na noite anterior. Aparece o Sr. Fernando.
- Dormiu bem?
- Bem… Sim, obrigada. Já tomei o pequeno almoço, mas tirava-me mais um café? É que demoro o meu tempo a acordar…
- E o quarto? Estava quente?
- Eeeeh... Sim. Por falar nisso, não tem por aí uns cobertores que já não lhe sirvam? É para as pessoas que vivem naqueles acampamentos de que lhe falei ontem.
- Acho que se arranja qualquer coisa.
- Obrigada.
Vou-me embora ainda a tremer. Não há cobertor ou calorífero que me valha. Estaciono o carro e vejo a Srª Maria Emília, que vem na minha direcção. Tiramos os resguardos do porta-bagagem. Sinto o cheiro das fogueiras ainda acesas desde a noite anterior. O sol espreita e amorna a planície alentejana. Dão-me um punhado de pevides e sento-me à soleira de uma porta. Os raios do sol batem-me no rosto e aqueço, finalmente.

16 setembro 2006

o saque

-'Tá escuro aqui.
-Segue...
-Fred...
-Segue... não pares.
Os vidros estilhaçados sob os pés dela dificultavam o andar e tinha a certeza que sentia alguns espetados nas fracas solas de borracha dos seus ténis. Acabara-se a pilha da lanterna, ironicamente ali mesmo dentro da loja de conveniência onde nem sequer podia procurar mais pilhas porque não via um palmo à frente da cara e era constantemente encandeada pela luz das lanternas das outras pessoas. Atirou a sua para dentro de um dos quatro sacos que carregava nas mãos. Quando olhava para trás não via Fred, tapado pelo enorme caixote que transportava, somente os seus pés cautelosos caminhando ainda mais devagar do que os dela. Mais ninguém se movia a esta velocidade. Até à saída do estabelecimento, os gritos de histerismo, uma amálgama de medo, stress e alegria vazia de qualquer discernimento afundavam-se nos seus ouvidos e a correria dos caixotes que os iam atropelando pelo caminho parecia não ter fim. O ar da rua apanhou-a de frente ao cruzar a saída e engoliu uma golfada de ar como se fosse limonada fresca. Ali já conseguia ver o caminho à sua frente, cortesia das luzes dos carros da polícia, de portas escancaradas e espalhados por todo o quarteirão. Os membros das forças policiais pareciam tão lívidos quanto ela, tinham as armas mas não o número e com a fraqueza assim exposta eram apedrejados e pontapeados em todos os lugares por onde passavam e se tentavam impor. Um enjoo descomunal começou a subir-lhe do ventre saliente até à garganta sem pré-aviso.
-Fred...
- Não pares mulher, não falta muito
Ela engoliu em seco. Alguém disparava tiros para o ar e em todas as direcções e Fred empurrava-a com o caixote encostando-o aos seus rins para que caminhasse mais depressa. Gritos aflitivos de mulheres. Uma pedra atingia violentamente o caixote que Fred levava.
-Eu estou bem, gritou lá de trás, não me acertou, continua, estamos quase lá.
Uns metros à frente deles caía um rapazote no chão com um gemido de derrota tão violento que os seus tímpanos quiseram explodir. Alguém da família do rapaz, provavelmente a mãe, em gritos intensos de agonia, tentava arrastá-lo do meio da estrada para qualquer recanto mais seguro puxando-o por um braço mas as suas forças para aguentar com um peso morto eram escassas e o rapaz retorcia-se com dores e gritava com ela tentando dissuadi-la, mandando-a fugir para casa. Outro tiro saído da escuridão mais profunda e a senhora também caiu, postrada, como um pedragulho inerte. O rapaz não disse nada, libertou-se da mão que ainda lhe agarrava o pulso e encolheu-se numa posição fetal.
-Não olhes amor, não olhes, são só mais uns metros até ao carro, implorou Fred sentido-lhe os tremores no corpo.
Ela sentiu uma enorme dor no ventre ao mesmo tempo que tentava conter os vómitos.
-Está ali o nosso carro amor, consigo vê-lo daqui.
Sim, ali estava o carro, de portas escancaradas e vidros partidos como todos os outros. Ela pousou os sacos no chão pensando que ia morrer logo ali mas Fred cortou-lhe a alucinação com um gritinho optimista.
-Não furaram os pneus!
Agarrou num dos seus sacos despejando todo o seu conteúdo em cima do banco traseiro e colocou o saco vazio por cima do banco da frente para ela se sentar sem apanhar vidros. Fechou as portas e esperou dois segundos para ver se era seguro antes de tirar as chaves do bolso das calças.
-Vamos sair daqui, já acabou amor.
O ar navegava sem Timoneiro dentro do carro que se deslocava como podia ao longo da Avenida, desviando-se do arsenal de electrodomésticos, mobiliário, corpos sentados, deitados, em pé sempre acompanhados com o background sonoro das sirenes da polícia e das ambulâncias mas sabia-lhe bem. Uma estranha indiferença apoderara-se do seu raciocínio lógico. Só queria chegar a casa. Evadir-se daquele corpo estrangeiro que lhe doía incessantemente. Fred ostentava um ar vitorioso nas faces rosadas. Sentiu-se adormecer no embalo do caminho. Acordou no sofá da sala. Fred ligava o enorme aparelho de Tv com grande aparato de satisfação. Olhou-a nos olhos e correu até à cozinha aparecendo com um enorme copo de leite quente e uma torrada.
-Para ti...
A luz voltara. Quente como o cobertor eléctrico que te enrola os pés e te faz acreditar que o Inverno nem está lá fora.
As notícias que passavam no enorme écran do televisor novo eram aterradoras. As míseras horas que haviam passado mostravam séculos de história, valores e costumes a cairem como cereais dentro duma taça de leite. O sistema trémulo, onde apenas o medo parecia decretar as "boas" acções. Tinha sido o maior Blackout de sempre. Agora era tempo de reconstrução.
-Fred...
-Diz amor.
- Nós somos isto?, perguntou ela apontando para a televisão.
- Nem sempre amor. Descansa.

14 julho 2006

O LAGARTO

Era uma vez um lagarto muito verde e viscoso. Não era de todo um lagarto vulgar porque não comia insectos de qualquer tipo.
Era um lagarto vegetariano. Ocupado na sua vidinha rotineira, comendo folha após folha com alegria e vendo os outros lagartos a suarem as estopinhas antes de se resfastelarem a comer um mísero moscardo ou coisa que o valha.
A sua vida era simples, bela e corria sem preocupações.
Um dia o lagarto encontrou, de caminho entre uma oliveira e um chaparro, um magnífico e possante gafanhoto amarelo.
Deram os dois de caras, quando o tronco em que se apoiava se partiu e o lagarto escorregou até ao tronco logo abaixo onde o gafanhoto, traquilamente se entregava distraído à sua higiene pessoal de limpeza das patas traseiras.
- Chiça! - bramiu o lagarto. - Estas árvores não são de confiar!!
O gafanhoto torceu cada um dos olhos em direcções opostas procurando uma saída e depois congelou.
- Olá. - cumprimentou o lagarto. - Que tens tu? Assustei-te? Peço desculpa, cai sem querer.
O gafanhoto rodou um dos olhos na direcção dele e gaguejou qualquer coisa imperceptível.
O lagarto inclinou a cabeça e olhou-o de esguelha.
- Desculpa, não ouvi... 'tás meio branco tu... isso pode ser anemia... não é muito bom.
- Não me vais comer? -perguntou o gafanhoto espantado.
O lagarto soltou uma sonora gargalhada.
- Comer-te? Que nojo!! Ha ha ha, de forma alguma. Sou um lagarto vegetariano. Não como bichos como tu.
- Bichos como eu ?
- Sim, com pernas, asas e sobretudo bem falantes, -retorquiu o lagarto com um ar enjoado.
- Precisas de proteínas para viver. - elaborou o gafanhoto pensativo. - Eu tenho disso à brava. Só podes tar a fazer bluff a ver se me apanhas desprevenido.
- 'Tás-me a dar azia . - disse o lagarto enquanto lhe voltava costas para se ir embora.
- Espera!, gritou o gafanhoto saltando por cima dele até ficar á sua frente. - Deixas-me confuso assim. Violas as regras da selva.
- Também me estás a deixar confuso a mim. - respondeu o lagarto. - És um gafanhoto com um grave caso de anemia e nunca vi nenhum a roer as unhas como 'tás a fazer agora.
- Não tenho unhas.
- Hmmm... pois. Isso ainda é mais grave. Vais ficar sem pata, portanto.
- Estás a deixar-me doido!! - gritou o gafanhoto, já com menos uma pata. - Vem, tenta apanhar-me e comer-me!! E eu tento fugir!! É essa a ordem natural das coisas!!
- Tens a certeza que não és um camaleão? -perguntou o lagarto desconfiado. Já não estás branco, estás a ficar seriamente vermelho. Isso também não deve ser nada bom.
O gafanhoto suspirou profundamente roendo a outra pata nervosamente e abanando a cabeça em negação. - Eu sabia que não devia ter deixado a terapia tão cedo... - Lamentou-se.
- Aceita-me assim bicho camaleão. - Não te quero comer.
- Não sou nenhum camaleão!! - Gritou o gafanhoto batendo com a cabeça no chão, sem patas que o segurassem.
- Bom, - Respondeu tranquilo o lagarto, - é esse o meu diagnóstico. Comeste as duas patas da frente e agora mudaste de cor novamente e estás verde, verdinho como eu. Não sou nenhum catedrático mas...
O gafanhoto arrastou-se pelo tronco fora em direcção ao lagarto e desatou num pranto encostado ao seu ombro.
- Já não sou gafanhoto nem camaleão. Não passo dum coto sem pernas agora.
- Devias ter acreditado em mim. - Disse o lagarto em tom de consolo.
- Não podia. - Garantiu-lhe o gafanhoto. - Colocaste-me num drama existencial sem saída. Ousaste violar as leis mais básicas do nosso mundo, eu fujo e tu corres atrás de mim, é tão simples, porque tinhas que complicar?
- Sabes mal.
- Esquece isso!! Que querias que acontecesse? Agora ficavamos amigos ou coisa assim? Formavamos parceria? És doido lagarto!! Bichos como tu, com esse tipo de visão arriscam-se a ser banidos. Não me posso dar com amotinados, revolucionários!
O lagarto encolheu os ombros. - Sabes mal.
- Come-me!! Come-me duma vez por todas seu lagarto anarquista e dissidente!! Come-me e vive de acordo com a tua natureza!! É assim que tem de ser!!
E foi assim que um lagarto vegetariano muito verde e viscoso sacou dum alka-seltzer e comeu um gafanhoto amarelo só por descargo de consciência.