18 maio 2010
O melro que assobiava Chopin (uma história verídica)
14 dezembro 2009
Fantasias de Natal!
18 novembro 2008
Algumas postas depois, finalmente, Juraci - a vidente contente - O desfecho.
Ali estava o professor à sua espera, de mão levantada a segurar um enorme cartão que dizia, "Welcome, Juraci - A vidente contente!". Juraci correu a abraçá-lo. Ele ria-se atrapalhado ao mesmo tempo que endireitava os óculos e corava. Juraci sempre tinha achado que ele podia ser um sósia de Woody Allen, não fosse ter quase dois metros de altura e ter a mania que era imortal. Depois de um jantar luxuriante em que mais uma vez, a química que Juraci sabia ter com Uganbanga se tinha revelado, a conversa estava posta em dia e Uganbanga apresentou-lhe as novas bolas de cristal. O modelo "ver sem limites 6.5", não era nada menos do que tinha visto no folheto promocional. Juraci até sentiu que as lágrimas lhe vinham aos olhos. Uganbanga deixou-a ficar uns momentos sozinha para que ela pudesse fazer uma primeira previsão e levou Kasparov para outra sala onde pretendia lançar um contra feitiço ao pobre cão.
Juraci não sabia onde se havia de enfiar depois de ver o seu futuro estampado na nova bola. Ela e o professor casados e felizes, a viverem ali em Istambul, ele a traficar e ela a prever as maleitas do mundo. Era um amor antigo este deles os dois, que remontava há dez anos atrás quando Juraci lhe tinha comprado a sua primeira bola mas nunca concretizado porque Juraci não tinha querido deixar a pátria. No fim, acabara por casar com um activista que a tinha deixado em prol da luta contra o recente movimento do "bird porn" e que agora estava preso por ter sido apanhado em flagrande delito a mandar uma queca de binóculos, no meio do mato na zona de Mafra. Juraci desviou os olhos da bola. De facto, não havia mais nada que a prendesse ao seu país natal Quando Uganbanga surgiu a espreitar pela porta para saber se já podia entrar, Juraci lançou-lhe um olhar terno e Uganbanga soube logo ali que ela tinha decidido ficar. Kasparov correu para ela de contente. O cão não estava totalmente curado mas agora falava russo.
01 novembro 2008
Juraci - A vidente contente
Nunca pondo em causa as suas capacidades, Juraci - a vidente contente - podia jurar que o mal estava na sua bola de cristal pessoal, um modelo que o famoso Professor Uganbanga tinha jurado durar uma vida e outras tantas mas que afinal, ao final de um ano já lhe desfocava metade da verdade e que ao fim de três, deixara de lhe mostrar o futuro para lhe começar a mostrar somente o presente. E o presente de Juraci - a vidente contente - era sempre a mesma coisa. Fazer sessões atrás de sessões. Era como estar a ver repetições do Dallas no canal Rtp Memória. Tornava-se chato. Por isso, Juraci - a vidente contente - pretendia fazer o seminário e aproveitar para trazer de lá, o último modelo em bolas de cristal. O modelo "ver sem limites 6.5" que lhe garantia não só o acesso ilimitado ao futuro como lhe permitia já o acesso a alguns universos paralelos, para aqueles clientes mais exigentes que gostassem de saber, por exemplo, como seria a sua vida casados com a Pamela Anderson do Baywatch e coisas assim, e também a actualização automática dos upgrades. Era um sonho.
Não perca o próximo episódio das crónicas de Juraci - a vidente contente - em crise temporária e a sua chegada a Istambual para reencontrar o seu velho amigo, Professor Uganbanga, famoso e virtuoso vidente-mor e traficante de bolas de cristal.
10 abril 2008
Gloria
24 outubro 2007
Em nenhures ninguém quer construir estradas
Um dia construíram uma estrada que passava por cima do sítio onde tinha nascido. Começaram a tomar a outra estrada. Deixaram de lá aparecer. Deixaram de lá passar. Deixaram de a admirar. Deixaram de a regar. Ela deixou de florir. Então, o fenómeno deu-se: transformou-se num cacto.
Agora mora no deserto vermelho. Tem por amigos uma joshua tree e um escorpião. De quando em vez também aparece uma rattlesnake muito venenosa. Falam pouco e vivem em harmonia no meio da imensidão. Em nenhures ninguém quer construir estradas.
05 outubro 2007
A torneira
Era uma vez uma rapariga que vivia numa casa muito velha. Uma noite acordou com a torneira a pingar. O barulho foi crescendo crescendo e invadiu-lhe os sonhos e o corpo. Sentia os pingos a correrem-lhe no peito ping, no lavatório ping, no carro encarnado onde viajava com o avô ping, nas pernas ping, no campo de girassóis que se transformavam em girafas ping, nas mãos que agarravam a almofada ping, na senhora velha com uma capeline azul que lhes ofereceu azeitonas ping.
Levantou-se e flutuou pela casa à procura de um sítio onde o ping não ping entrasse nos seus sonhos ping e no seu corpo ping. Pela janela ping viu a árvore grande ping do jardim ping. Ali ping estaria ping a salvo ping.
Levou a almofada consigo e trepou até ao ramo maior. Antes de adormecer reparou numa falha da madeira ao lado da sua mão esquerda. Lá dentro havia qualquer coisa que brilhava, talvez um garfo esquecido ou um diamante escondido, os tesouros guardam-se sempre em sítios improváveis.
Regressou ao campo de girafas que entretanto tomavam chá com o avô, enquanto a senhora de capeline azul regava um jarro com girassóis e sorria muito. A girafa mais alta largou a chávena e pôs-lhe na mão um diamante enorme e transparente. O frio fê-la acordar. Não era um diamante nem um garfo que estava na sua mão esquerda. Era uma torneira que tinha nascido no ramo da árvore onde dormia.
12 agosto 2007
O Jorge
Descobri que quem lá vive é uma senhora com mais de 90 anos que anda sempre sozinha. Muito magra e tímida, encolhe-se toda quando alguém passa por ela, quando a cumprimento na rua não me responde - não me deve reconhecer fora do contexto. Passa muitas horas sentada num banco do jardim em frente ao prédio, gostava de saber no que pensa. Por vezes quando me responde aos bons dias sorri, e nesse sorriso descubro uma alegria quase infantil, e imagino-a de tranças a andar de baloiço. Presumo que a santa mãe seja dela, a declaração de ostracismo de um qualquer neto ou sobrinho.
Um dia vi-a entrar com um rapaz volumoso, moreno, bigode, com um ar malandreco e autoritário. Sem dúvida o autor das afixações, que entretanto tinham aumentado com a publicidade a um campeonato de kick boxing, onde se mostravam 4 galfarros em poses ameaçadoras e possantes. Informação sem dúvida utilíssima aos 8 inquilinos do edifício.
Quando estava a tomar chá em casa dos únicos vizinhos da minha idade descobri que a D. Madalena de seu nome não tem netos e que os autocolantes se devem ao Jorge. Eles vivem mesmo em frente dela e um dia o Jorge começou a aparecer lá por casa. De início a D. Madalena dizia que era o seu sobrinho, e passado uns tempos começou a referir-se a ele apenas como “o Jorge”. O rapaz começou a ser visita habitual.
A senhora que era assídua nos pagamentos do condomínio e seguro começou a ser menos pontual e a acumular dívidas. Um dia a falar com esta vizinha disse “sabe, comecei a ter umas despesas extra. O Jorge acha que eu devo ter telefone, TV cabo, internet... começámos a fazer umas viagens, que o Jorge diz que a vida é para aproveitar enquanto cá estamos... além do mais, coitadinho, precisou de fazer uma operação à vista e como ele não tinha dinheiro eu paguei-lhe. A vida é para aproveitar, sabe”.
Depois da operação à vista o Jorge começou a aparecer menos. A D. Madalena continua a passear sozinha. A vida é para aproveitar enquanto cá estamos.
27 julho 2007
Uma história exemplar
Um dia, acidentalmente, engoliu uma mosca.
Tempos mais tarde, a contra gosto, teve que engolir um sapo. Tomou um alkazeltzer para facilitar a digestão.
Outro dia, por curiosidade, resolveu engolir um coelho. Para o tirar de lá de dentro foi o cabo dos trabalhos, tiveram que chamar um mágico.
Mas nada a fazer, tinha tomado o gosto pela deglutição de animais. Começou a frequentar diariamente o zoo: nesse período engoliu um macaco, um koala, um pica-pau e até uma jibóia.
Depois passou a animais de porte maior: marcharam um tigre, um gorila, uma ema e um golfinho.
Bastava abrir a boca para se ouvir a selva lá dentro.
Um dia, resolveu concretizar o seu sonho supremo: engolir um rinoceronte. Assim o fez, mas aquele animal caiu-lhe mal. Ficou com azia e foi parar ao hospital.
Depois de libertos os animais, chamaram o psiquiatra de plantão. Prescreveu-lhe medicação e terapia. Passou a ir lá 4 vezes por semana.
Deixou de engolir animais, estava curado.
Morreu de tédio.
17 dezembro 2006
Insónia
- Boa noite, Sr. Fernando, que frio que está lá fora.
- Pois está. Sabe, o frio do Alentejo é muito diferente do da minha terra, é um frio fininho, por mais que nos aqueçamos entra-nos pelos ossos dentro.
O Sr. Fernando é dono de uma hospedaria no Alentejo. Oriundo de Seia, trocou a Beira pelo Alentejo e aí vive há muitos anos. O forte sotaque denuncia a sua origem, todos os ‘s’ são trocados por ‘x’. Continuamos a conversar sobre o tempo.
- Eu morava em frente ao mar, aquilo também não é fácil no Inverno por causa da humidade. Na minha rua, os carros estacionavam ao contrário para prevenir a corrosão da chapa. O termómetro não desce tão baixo, mesmo assim digo-lhe que há dias ou noites que também não são fáceis por aquelas bandas…
Despeço-me de boa noite. O dia foi longo e preciso de descansar. Subo as escadas, meto a chave na porta, rodo a maçaneta, entro no quarto, fecho a porta, pouso as chaves na mesa de cabeceira. Procuro imediatamente o comando do aquecimento e ponho no on. Vvvvvvvvvvvvvvvvv, faz a máquina, soprando um jacto de calor no quarto. Preparo a cama, tiro o cobertor de dentro do armário e as duas almofadas. Deito-me na cama ainda a tremer, depois de trocada a roupa. Acendo a televisão, faço um zapping pelos 4 insólitos canais portugueses, telenovelas e outra coisa qualquer, a tristeza de sempre, vou mas é dormir antes que deprima. Desligo a luz.
5 minutos depois - a porcaria do barulho do aquecedor e o corpo que não aquece, as almofadas são altas demais, tenho sede. Acendo a luz, desligo o aquecedor e bebo água por uma garrafa. Silêncio finalmente.
20 minutos depois – Porra, que não há maneira de aquecer. E por mais mossas que faça na almofada, esta não cede ao meu peso e intenção. Levanto-me, vou à casa-de-banho, saco as toalhas e decido que estas farão a vez da almofada. Ponho a fronha por cima para não sentir a textura do tecido.
50 minutos depois – Continuo a tremer de frio e a almofada substituta é dura. Puxo o cobertor para cima e coloco-o à altura da cabeça. Menos mal. No silêncio, distingo uma voz no quarto ao lado, provavelmente falando ao telefone. Não estou interessada na conversa mas percebo a palavra ‘5ª feira’. Ponho os dedos nos ouvidos, era o que mais me faltava prestar atenção a uma conversa que não é minha. Não sei como, finalmente adormeço.
3 horas depois – Acordo cheia de frio. Será o tal frio fininho de que falava o dono da hospedaria? E agora o que faço? Se puxo o cobertor que funciona de almofada não durmo por causa da almofada improvisada. Se acender o aquecimento não adormeço por causa do barulho. Vou fumar um cigarro enquanto decido, já acordei à mesma. Apanho o maço e o isqueiro e vou para casa-de-banho, ligo o extractor de fumo. Sento-me na retrete e penso. Penso que isto tudo é um disparate e que já devia estar a dormir há horas. Porque raio não adormeço? Não bastam as 3 horas mal dormidas no dia anterior? Não basta o que vi e ouvi hoje? Volto para a cama. Saco do meu último recurso. Deito-me de barriga para cima e aguardo o suave embalo do hipnótico: a cabeça teima em girar e girar e girar. 3 horas, depois volto a adormecer.
8:00 – toca o despertador. Desligo. Volta a tocar. Desligo. Volta a tocar. Desligo. Acordo em sobressalto, levanto-me de um pulo, tomo banho, arrumo tudo, saio do quarto e volto para o balcão onde me encostei na noite anterior. Aparece o Sr. Fernando.
- Dormiu bem?
- Bem… Sim, obrigada. Já tomei o pequeno almoço, mas tirava-me mais um café? É que demoro o meu tempo a acordar…
- E o quarto? Estava quente?
- Eeeeh... Sim. Por falar nisso, não tem por aí uns cobertores que já não lhe sirvam? É para as pessoas que vivem naqueles acampamentos de que lhe falei ontem.
- Acho que se arranja qualquer coisa.
- Obrigada.
Vou-me embora ainda a tremer. Não há cobertor ou calorífero que me valha. Estaciono o carro e vejo a Srª Maria Emília, que vem na minha direcção. Tiramos os resguardos do porta-bagagem. Sinto o cheiro das fogueiras ainda acesas desde a noite anterior. O sol espreita e amorna a planície alentejana. Dão-me um punhado de pevides e sento-me à soleira de uma porta. Os raios do sol batem-me no rosto e aqueço, finalmente.
16 setembro 2006
o saque
-Segue...
-Fred...
-Segue... não pares.
Os vidros estilhaçados sob os pés dela dificultavam o andar e tinha a certeza que sentia alguns espetados nas fracas solas de borracha dos seus ténis. Acabara-se a pilha da lanterna, ironicamente ali mesmo dentro da loja de conveniência onde nem sequer podia procurar mais pilhas porque não via um palmo à frente da cara e era constantemente encandeada pela luz das lanternas das outras pessoas. Atirou a sua para dentro de um dos quatro sacos que carregava nas mãos. Quando olhava para trás não via Fred, tapado pelo enorme caixote que transportava, somente os seus pés cautelosos caminhando ainda mais devagar do que os dela. Mais ninguém se movia a esta velocidade. Até à saída do estabelecimento, os gritos de histerismo, uma amálgama de medo, stress e alegria vazia de qualquer discernimento afundavam-se nos seus ouvidos e a correria dos caixotes que os iam atropelando pelo caminho parecia não ter fim. O ar da rua apanhou-a de frente ao cruzar a saída e engoliu uma golfada de ar como se fosse limonada fresca. Ali já conseguia ver o caminho à sua frente, cortesia das luzes dos carros da polícia, de portas escancaradas e espalhados por todo o quarteirão. Os membros das forças policiais pareciam tão lívidos quanto ela, tinham as armas mas não o número e com a fraqueza assim exposta eram apedrejados e pontapeados em todos os lugares por onde passavam e se tentavam impor. Um enjoo descomunal começou a subir-lhe do ventre saliente até à garganta sem pré-aviso.
-Fred...
- Não pares mulher, não falta muito
Ela engoliu em seco. Alguém disparava tiros para o ar e em todas as direcções e Fred empurrava-a com o caixote encostando-o aos seus rins para que caminhasse mais depressa. Gritos aflitivos de mulheres. Uma pedra atingia violentamente o caixote que Fred levava.
-Eu estou bem, gritou lá de trás, não me acertou, continua, estamos quase lá.
Uns metros à frente deles caía um rapazote no chão com um gemido de derrota tão violento que os seus tímpanos quiseram explodir. Alguém da família do rapaz, provavelmente a mãe, em gritos intensos de agonia, tentava arrastá-lo do meio da estrada para qualquer recanto mais seguro puxando-o por um braço mas as suas forças para aguentar com um peso morto eram escassas e o rapaz retorcia-se com dores e gritava com ela tentando dissuadi-la, mandando-a fugir para casa. Outro tiro saído da escuridão mais profunda e a senhora também caiu, postrada, como um pedragulho inerte. O rapaz não disse nada, libertou-se da mão que ainda lhe agarrava o pulso e encolheu-se numa posição fetal.
-Não olhes amor, não olhes, são só mais uns metros até ao carro, implorou Fred sentido-lhe os tremores no corpo.
Ela sentiu uma enorme dor no ventre ao mesmo tempo que tentava conter os vómitos.
-Está ali o nosso carro amor, consigo vê-lo daqui.
Sim, ali estava o carro, de portas escancaradas e vidros partidos como todos os outros. Ela pousou os sacos no chão pensando que ia morrer logo ali mas Fred cortou-lhe a alucinação com um gritinho optimista.
-Não furaram os pneus!
Agarrou num dos seus sacos despejando todo o seu conteúdo em cima do banco traseiro e colocou o saco vazio por cima do banco da frente para ela se sentar sem apanhar vidros. Fechou as portas e esperou dois segundos para ver se era seguro antes de tirar as chaves do bolso das calças.
-Vamos sair daqui, já acabou amor.
O ar navegava sem Timoneiro dentro do carro que se deslocava como podia ao longo da Avenida, desviando-se do arsenal de electrodomésticos, mobiliário, corpos sentados, deitados, em pé sempre acompanhados com o background sonoro das sirenes da polícia e das ambulâncias mas sabia-lhe bem. Uma estranha indiferença apoderara-se do seu raciocínio lógico. Só queria chegar a casa. Evadir-se daquele corpo estrangeiro que lhe doía incessantemente. Fred ostentava um ar vitorioso nas faces rosadas. Sentiu-se adormecer no embalo do caminho. Acordou no sofá da sala. Fred ligava o enorme aparelho de Tv com grande aparato de satisfação. Olhou-a nos olhos e correu até à cozinha aparecendo com um enorme copo de leite quente e uma torrada.
-Para ti...
A luz voltara. Quente como o cobertor eléctrico que te enrola os pés e te faz acreditar que o Inverno nem está lá fora.
As notícias que passavam no enorme écran do televisor novo eram aterradoras. As míseras horas que haviam passado mostravam séculos de história, valores e costumes a cairem como cereais dentro duma taça de leite. O sistema trémulo, onde apenas o medo parecia decretar as "boas" acções. Tinha sido o maior Blackout de sempre. Agora era tempo de reconstrução.
-Fred...
-Diz amor.
- Nós somos isto?, perguntou ela apontando para a televisão.
- Nem sempre amor. Descansa.
14 julho 2006
O LAGARTO
Era um lagarto vegetariano. Ocupado na sua vidinha rotineira, comendo folha após folha com alegria e vendo os outros lagartos a suarem as estopinhas antes de se resfastelarem a comer um mísero moscardo ou coisa que o valha.
A sua vida era simples, bela e corria sem preocupações.
Um dia o lagarto encontrou, de caminho entre uma oliveira e um chaparro, um magnífico e possante gafanhoto amarelo.
Deram os dois de caras, quando o tronco em que se apoiava se partiu e o lagarto escorregou até ao tronco logo abaixo onde o gafanhoto, traquilamente se entregava distraído à sua higiene pessoal de limpeza das patas traseiras.
- Chiça! - bramiu o lagarto. - Estas árvores não são de confiar!!
O gafanhoto torceu cada um dos olhos em direcções opostas procurando uma saída e depois congelou.
- Olá. - cumprimentou o lagarto. - Que tens tu? Assustei-te? Peço desculpa, cai sem querer.
O gafanhoto rodou um dos olhos na direcção dele e gaguejou qualquer coisa imperceptível.
O lagarto inclinou a cabeça e olhou-o de esguelha.
- Desculpa, não ouvi... 'tás meio branco tu... isso pode ser anemia... não é muito bom.
- Não me vais comer? -perguntou o gafanhoto espantado.
O lagarto soltou uma sonora gargalhada.
- Comer-te? Que nojo!! Ha ha ha, de forma alguma. Sou um lagarto vegetariano. Não como bichos como tu.
- Bichos como eu ?
- Sim, com pernas, asas e sobretudo bem falantes, -retorquiu o lagarto com um ar enjoado.
- Precisas de proteínas para viver. - elaborou o gafanhoto pensativo. - Eu tenho disso à brava. Só podes tar a fazer bluff a ver se me apanhas desprevenido.
- 'Tás-me a dar azia . - disse o lagarto enquanto lhe voltava costas para se ir embora.
- Espera!, gritou o gafanhoto saltando por cima dele até ficar á sua frente. - Deixas-me confuso assim. Violas as regras da selva.
- Também me estás a deixar confuso a mim. - respondeu o lagarto. - És um gafanhoto com um grave caso de anemia e nunca vi nenhum a roer as unhas como 'tás a fazer agora.
- Não tenho unhas.
- Hmmm... pois. Isso ainda é mais grave. Vais ficar sem pata, portanto.
- Estás a deixar-me doido!! - gritou o gafanhoto, já com menos uma pata. - Vem, tenta apanhar-me e comer-me!! E eu tento fugir!! É essa a ordem natural das coisas!!
- Tens a certeza que não és um camaleão? -perguntou o lagarto desconfiado. Já não estás branco, estás a ficar seriamente vermelho. Isso também não deve ser nada bom.
O gafanhoto suspirou profundamente roendo a outra pata nervosamente e abanando a cabeça em negação. - Eu sabia que não devia ter deixado a terapia tão cedo... - Lamentou-se.
- Aceita-me assim bicho camaleão. - Não te quero comer.
- Não sou nenhum camaleão!! - Gritou o gafanhoto batendo com a cabeça no chão, sem patas que o segurassem.
- Bom, - Respondeu tranquilo o lagarto, - é esse o meu diagnóstico. Comeste as duas patas da frente e agora mudaste de cor novamente e estás verde, verdinho como eu. Não sou nenhum catedrático mas...
O gafanhoto arrastou-se pelo tronco fora em direcção ao lagarto e desatou num pranto encostado ao seu ombro.
- Já não sou gafanhoto nem camaleão. Não passo dum coto sem pernas agora.
- Devias ter acreditado em mim. - Disse o lagarto em tom de consolo.
- Não podia. - Garantiu-lhe o gafanhoto. - Colocaste-me num drama existencial sem saída. Ousaste violar as leis mais básicas do nosso mundo, eu fujo e tu corres atrás de mim, é tão simples, porque tinhas que complicar?
- Sabes mal.
- Esquece isso!! Que querias que acontecesse? Agora ficavamos amigos ou coisa assim? Formavamos parceria? És doido lagarto!! Bichos como tu, com esse tipo de visão arriscam-se a ser banidos. Não me posso dar com amotinados, revolucionários!
O lagarto encolheu os ombros. - Sabes mal.
- Come-me!! Come-me duma vez por todas seu lagarto anarquista e dissidente!! Come-me e vive de acordo com a tua natureza!! É assim que tem de ser!!
E foi assim que um lagarto vegetariano muito verde e viscoso sacou dum alka-seltzer e comeu um gafanhoto amarelo só por descargo de consciência.