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12 maio 2009

O dia em que a realidade foi mais estranha que a ficção - Desafio fio fio em III Actos

Acto III

Até podia parecer que no meio de um dia assim, a parte do almoço seria a melhor. Errado outra vez. Ainda fui na conversa do formador quando já perto da uma da tarde nos informou que apesar de existir ali uma cantina nas instalações da casa dos artistas, como era Domingo pouca coisa haveria para comer, a não ser talvez, umas omeletes que as cozinheiras se prestassem a cozinhar. E lá fomos nós, com o estômago a dar horas, direitos à cantina onde descobrimos ser hora de ponta. Os velhotes ex-actores e artistas estavam todos a almoçar aquela hora tal como nós, mas não omeletes. Havia à escolha carne ou peixe no forno com batatas e salada e sopa de legumes. Perguntei à senhora que servia se podia pedir qualquer um dos pratos e eis quando ela me informa que aqueles pratos estavam somente destinados aos residentes e que se tivesse sido informada mais cedo pelos formadores da workshop, poderia ter feito mais comida a contar connosco. De novo, senti as narinas a ferverem. Perguntou se desejava comer uma omelete ou uma sopa. Pedi só a sopa, sentei-me, comi e saí sem pagar. Que me desculpem os mais susceptíveis às questões da moral e dos bons costumes mas caralhosmafodam se eu não havia de tirar pelo menos um pequeno prazer daquele dia!

Definições

Raiva (s.f)

1. Doença própria dos cães, caracterizada por acessos furiosos; hidrofobia.

2. Grande irritação; fúria; ódio.

3. Prurido da dentição (nas crianças).

4. Espécie de bolo seco.

5. Ant. Infâmia; labéu; descrédito; mancha na reputação.

Contra (prep)

1. Denota as seguintes relações: oposição; inimizade; contradição; direcção; proximidade; encosto.

adv.

2. Contrariamente.

s. m.

3. Contrariedade, oposição; objecção; obstáculo; inconveniente. (Us. mais no pl.)

Luz (s.f)

1. O que (iluminando os objectos) os torna visíveis.

2. Candeeiro, vela ou outra coisa acesa.

3. Efeitos de luz imitados num quadro.

4. O que ilumina o espírito.

5. Claridade.

6. Brilho, fulgor.

7. Critério.

8. Evidência.

9. Ilustração.

10. Publicidade.

Morre (intr)

1. Cessar de viver.

2. Secar-se.

3. Extinguir-se, acabar.

4. Fig. Sofrer muito; não medrar.

5. Não vingar.

6. Não chegar a concluir-se.

7. Desaguar.

8. Cair em esquecimento.

9. Definhar.

10. Perder o brilho.

11. Ter paixão (por alguma coisa).

Conclusão:

Um cão com hidrofobia mastiga um bolo seco em oposição aos efeitos da luz imitados num quadro. Não chega a concluir-se.

O dia em que a realidade foi mais estranha que a ficção - Desafio fio fio em III Actos

Acto II

No átrio de entrada do Centro de Formação, as pessoas preenchem dados incompletos nas fichas de inscrição e eu também recebo uma da senhora sentada à secretária. Preencho a ficha e pergunto se falta alguma coisa. A senhora anafada e cheia de afrontamentos faz um esgar, leva as mãos à boca e tem o maior ataque de tosse registado no último século. Em meia dúzia de segundos percebo o quanto me deixei afectar pelas últimas notícias dos jornais. Quero levantar-me dali com um salto e correr a fugir da possível gripe e prego a todos os deuses por uma máscara. O medo absurdo de cair no rídiculo impede-me de me mexer, bem como a todos os outros presentes e fico ali a meio metro da fera, a piscar os olhos com olhar complacente enquanto ela despeja as bactérias todas em cima de mim.
Na sala de aula estão à volta de 40 pessoas e o formador. Reparo sobretudo em duas pessoas. A senhora ao meu lado que gostava de brilhantes. Toda ela brilhava. Pequenos fio embutidos no têxtil do casaco brilhavam como fios de oiro. A mala doirada poisada em cima das pernas cruzadas. Cabelo de permanente em carapinha. Cinquenta anos de idade, imagino. Pulseiras e fio com banho de oiro. Relógio gordo e exuberante cravejado a diamantes falsos mas desta vez em prateado. Caneta para tirar apontamentos também doirada. Mas o que me espanta verdadeiramente naquela senhora é uma incrível característica. Durante todo aquele período até às 18 horas da tarde, quando todos os restantes batem o pé, trocam de posição nas cadeiras desconfortáveis, suspiram de ânsia, desenham rabiscos abstractos nas bordas dos cadernos, aquela senhora cor de sol consegue manter-se hirta como se embutida em cimento, sem mexer um centímetro do corpo, sem inclinar o pescoço sequer para olhar para o bloco de apontamentos bastando-lhe revirar os olhos, sem trocar a ordem dos pés cruzados, sem abrir a boca, sem olhar para o lado. Fabuloso.
A outra personagem em que reparo é uma rapariga nova, trinta e tal anos. Num dos intervalos vem falar comigo, diz.me que é psicóloga desempregada. Fala a cem à hora como se estivesse carregada de coca e tremem-lhe as mãos a segurar o cigarro. Pergunta se ouvi falar de um incêndio numa casa que até passou no telejornal e conta-me que era a casa do namorado com quem ela vivia e que ela tinha perdido as coisas todas que lá estavam dentro. Cinco minutos depois, fala-me da tragédia do namorado que faleceu recentemente. Pergunto-lhe se está a falar do mesmo namorado a quem tinha ardido a casa e ela confirma. Estava condenado ao azar aquele rapaz, penso eu no momento em que ela tira os óculos escuros da cara e olha para mim com um ar muito desolado pronta para iniciar a tragédia seguinte. Pois, entretanto fiquei cega de um olho...
Depois deste momento único que tem tendência a provocar a gargalhada nervosa que tive de conter à força para não ferir susceptibilidades, voltámos à aula para continuar a ouvir o discurso do formador de escrita que parecia só ter lido uma única autora durante a vida. Enid Blyton. Entre as 9 da manhã e as seis da tarde, aquele homem, quarentão, timbre de voz a fazer lembrar o Prof. Marcelo, preocupou-se e bem em oferecer-nos alguns exemplos de boa literatura. Mas todos eles pertenciam ao universo das aventuras dos Cinco. Pensei que triste era não ter ali agora o famoso cão Tim para lhe morder o rabo.
Caralhosmafodam! O dia estava a correr bem.

Câmara hiperbárica

Uma impressora pergunta à outra:
- Essa cópia é tua ou é impressão minha?

Desesperacimento

Morre a tua luz, cada dia um pouco mais. O teu corpo definha, enfraquecido pela tristeza que te entrou pela proximidade da morte. A doença e a sua cura extirparam-te o tumor, o humor, esqueceste o amor que tinhas dentro de ti. Já não ouço as tuas gargalhadas, desinteressas-te de tudo, como se a morte fosse a única alternativa, como se nada mais importasse a não ser  o dia em que fecharás os olhos para sempre. Abandonas as palavras e deixas o silêncio, cada dia mais intenso, como gritos surdos com que nos feres os tímpanos da alma. Morres sem morrer como se nos habituasses ao que será o futuro sem ti. Às vezes já não sei quem és tu. E minha tristeza deu lugar à raiva e a raiva deu lugar ao gelo que me mina o coração. Depois de tantos anos a conhecer-te já não sei quem és. Nem quem sou para ti.

A Raiva

A raiva que lhe preenchia as noites.

A raiva que corria nas suas veias.

A raiva que lhe rasgava a pele.

A raiva de golpes desferidos pela memória que não falhava nunca.

A raiva que sempre cedia às lembranças da luz.

A raiva contra a luz que não morria.

A raiva, muita raiva, tanta raiva que era impossível não consentir.

A raiva, essa raiva, aquela raiva, muita raiva, tanta raiva suprimiu-se à custa de tanta raiva.

Raiva por ela, raiva por ele, raiva pela raiva, muita raiva, tanta raiva.

Até não sobrar mais nada, até às palavras perderem o sentido à custa de serem lidas até à exaustão.

Até não haver mais nada, senão ela.

Sem raiva.

impossível não consentir

Movimento derramado do corpo mas também do coração, o laço que os uniu durante o tempo daquelas noites foi dissolvido a golpes desferidos pela raiva muita raiva tanta raiva que era impossível não consentir.

Agora vive às escuras. Mas prefere essa cegueira à simples lembrança da luz daquelas noites que só lhe acendem a raiva muita raiva tanta raiva que é impossível não consentir.

Aquela raiva muita raiva tanta raiva que é impossível não consentir.

Um isqueiro

Tens um isqueiro novo. Daqueles que não faz sequer chama. Mas escolheste um cigarro para deixar uma marca na pele.

À boca de cena

Era uma vez um rapaz que tinha medo do escuro. Ladrões e monstros entravam no quarto quando a luz se apagava. Uns eram maus e grandes, os outros também. O rapaz cresceu e quis ir viver para o sítio onde a luz nunca morre. Dormia ao lado do palco e à noite era visitado por damas dramáticas e senhores muito compostos. Uns e outros eram a fingir. Pouco importava que fossem personagens. Ao lado do palco as horas de escuridão eram menos solitárias.

Oxigénio

Para acender uma vela precisamos de fazer fogo

1772: Sheele fez experiências que demonstravam a existência de um gás especial no ar, mais leve e brilhante que os outros. Não publicou as seus resultados até 1777.

Uma vela dá luz enquanto houver cera na sua estrutura

1774: Priestley fez experiências semelhantes às de Sheele, aumentando o conhecimento a que o outro tinha chegado. Esse gás fazia aumentar a intensidade do fogo e permitia que ratinhos sobrevivessem 4 vezes mais tempo que os que respiravam ar normal. Publicou estes resultados.

A chama só dura enquanto houver oxigénio no ar

1775: Lavoisier fez experiências semelhantes e chegou a resultados idênticos. Chamou ao gás oxigénio, que em grego significa formador de ácido.


Aposto que todas as vezes em que alguém repete a demonstração Sheele, Priestley e Lavoisier andam à tareia reivindicando a autoria da descoberta, escondendo à vista de todos a raiva com que ficaram contra a luz que morre. Sem oxigénio.


a corista

Corista reputada no casino da Figueira da Foz, a andaluza misteriosa causava furor na população masculina que naquele Verão de 1965 refrescava a vista longe dos olhares reprovadores das mulheres legítimas (que a odiavam com intensidade idêntica ao enlevo dos maridos). Dona de umas ancas musicais e de um decote vertiginoso, nem os seminaristas de férias escapavam à concupiscência libidinosa que exalava e ao inevitável sacramento da reconciliação bem provido de penitências mortificantes...
Era dona de um olhar felino e de uma desvergonha insinuada que cativava o mais polido dos filhos das boas famílias que a cortejavam engomados nos seus fatos de linho. Para lhes quebrar a a altivez mimada, bastava-lhe o sorriso trocista que aninhava sempre na ponta direita da sua boca. Imperava no meio deles por direito próprio de uma maneira tão eficaz quanto dissimulada. Não havia quem lhe regateasse um capricho, por mais excêntrico ou custoso que este fosse. Homens feitos perdiam fortunas por sua causa e uma multidão de adolescentes esperava cada uma das suas aparições com o fervor próprio dos crentes.
Todas as noites, no fim de cada espectáculo, era inundada de uma multidão de fãs, mais ou menos providos de buço, que se digladiavam para poder oferecer-lhe o último copo da noite e um braço para a conduzir ao carro.
As estrelas do cartaz empalideciam na sua presença e receavam medir-se com a sua popularidade. Achavam-na vulgar e desprovida de talento. Ninguém sabia bem qual era o seu.
Mais do que um desafio, ela era um destino. Um prenuncio irresistível de naufrágio. A encarnação feminina mais cabal do provérbio “vale o mal que faz pelo bem que sabe”. E eu bem sabia o bem que ela sabia…
Quando aquele bêbado idiota a atropelou com o seu AC Shelby Cobra 427 odiei-a, enraivecido, como se a culpa de morrer fosse sua. Mulheres assim merecem, no mínimo, a imortalidade…
Mari Luz, porque me abandonaste?!

O dia em que a realidade foi mais estranha que a ficção - Desafio fio fio em III Actos

Acto I
9:30 da manhã. Domingo. Casa do Artista. Workshop de ficção narrativa no centro de formação, uma iniciativa da produtora de eventos Storytime. Parece fácil apesar de nunca ter ido à casa do artista. Uma pessoa entra nas instalações, estaciona o carro e depois segue as indicações que lá hão-de estar afixadas. Errado. Na chegada ao portão vejo dois parques de estacionamento, um exterior fechado por cancela e sem máquina ou alguém para atender. Resta-me o parque interior. Desco a rampa até à cancela que tem uma máquina para meter moeda e tirar bilhete pela módica quantia de 1 euro por cada hora sendo que eu teria de permanecer ali até às dezoito horas. Contas feitas, volto a sair com o carro de marcha atrás para perceber que numa área de dois quilómetros não tenho nenhum sítio onde estacionar no exterior do edíficio. Volto lá para dentro. Desco a rampa, meto 1 euro e recebo o bilhete. Olho em frente depois de passar a cancela e vejo outra rampa de subida para o exterior que me daria acesso ao tal parque que estava fechado. No entanto tenho um sinal obrigatório à minha frente a avisar-me que devo seguir para a esquerda e enfiar-me no parque a pagar e sem refilar. Sinto um leve ardor nas narinas e resolvo seguir em frente. Estaciono o carro cá em cima ao ar livre num parque que é um mar de lugares vazios. Nenhuma placa informativa sobre a localização do centro de formação. Entro na recepcção de um edíficio que diz Residência. O segurança apressa-se a vir ter comigo com ar de quem se sente violentado.
- O centro de formação? - pegunto eu.
- Como é que entrou aqui?
- Hmm, subi ali pelo parque.
Ele exibe um meio sorriso como quem diz, olha esta tem a mania que é esperta e abana a cabeça.
- Não pode estar aqui. Tem de voltar a descer.
- Não vou pagar um euro por cada hora que aqui vou estar, que é até às dezoito.
- Um euro dá até às dezoito.
- A máquina lá em baixo diz que não.
- Está enganada, a máquina não diz isso.
- Diz sim.
- Está enganada, a máquina não diz isso.
- Ok, devo ter visto mal.
Silêncio.
- O centro de formação? - pergunto eu.
Ele faz o sorriso do Joker.
- Agora volta a descer e estaciona o carro lá em baixo e depois volta a vir aqui ter comigo a pé e eu explico-lhe onde é o centro.
O centro de formação, volto a perguntar de sobrancelha franzida, impávida e serena. Ele desiste do confronto com o batman.
- Ok, segue o parque sempre até lá ao fundo e depois encontra duas portas. Uma delas é a do Centro. Mas depois de entrar, feche-me a porta, se faz favor.
Sigo parque fora até não poder andar mais. 500 metros de parque. Encontro a porta e tal como ele tinha pedido, fecho-a atrás de mim e saio para o exterior. Está frio hoje. Vejo que me esqueci do casaco dentro do carro. Viro-me para voltar atrás e vejo que a porta fechada não tem maçaneta. Tinha-se partido algures no tempo e nada de improvisos, fica assim mesmo. Não posso voltar a entrar e já estou atrasada. O Joker tinha ganho. Caralhosmafodam!

O funil

O vizinho do lado que ouve música muito alto. A minha mãe que me enche o frigorífico de sopas que deixo azedar. A minha irmã que não sabe escolher namorados e me telefona em lágrimas todas as semanas. O café que esfria depressa porque o cretino do senhor antónio não escalda a chávena como lhe peço. Os jornalistas que são uns abutres e só falam de desgraças. Os velhos que entopem os balcões da caixa geral de depósitos para actualizar a puta da caderneta. O francisco que só sabe falar das gajas que anda a comer e me chateia a molécula porque o meu mal é estar há muito tempo sozinho e garante que isto passa quando eu for com ele ao bar das brasileiras simpáticas. Estou farto desta maltosa toda, estou farto do enfado que cresce em mim, da impaciência com que me olho ao espelho, da barriga que amolece e dos anos que vou coleccionando. Quero que se lixe esta merda toda, já não posso ser tudo o que quiser, tenho o frigorífico cheio de sopas, tenho um estranho rancoroso que olha para mim no espelho e me sorri bela merda em que te tornaste. Quero que se foda o funil que tenho à minha frente, estou-me nas tintas para que vá ficando cada vez mais estreito até ao dia em que já não caberei nele.