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27 abril 2011

A brincar com rascunhos guardados

E agora eu era a amante perfeita, sem perguntas nem pedidos, a amante que espera na esquina redonda das horas de ausência. E agora eu era a amante perfeita que enche as horas vazias com a vida que é dela,  uma vida feita das coisas de que são feitas todas as outras vidas, pessoas sono riso trabalho maçãs minutos.   E agora eu era a amante canibal que ria de quem fica com os ossos, na certeza de que nada mais restaria depois do meu banquete de ti. 

15 abril 2010

a brincar, antes que me esqueça

E agora eu era cirurgiã e inventava a forma de descobrir todas as pessoas que te habitam. Deitava-te numa cama, alisava o teu peito até encontrar o ponto de incisão perfeito e deslizava as tenazes indolores com que te abriria . Pegava o teu coração na minha mão, olhava-o de todos os lados e encontrava uma multidão.  Junto das veias reconhecia o homem duro a quem nada lhe importa, o recitador de certezas inabaláveis, o suicida tranquilo que se ri da desgraça, o encantador de serpentes em frente do seu público. Espreitava o lado das artérias e encontrava o homem sério que evita sorrir para não se desmoronar, o tímido que perde a voz em curvas inesperadas, o marinheiro que não suporta o barulho das ondas. E agora eu era cirurgiã, sentia nos meus dedos as costuras de que és feito, e tudo finalmente estaria no seu lugar.

22 janeiro 2010

a brincar de manhã

e agora eu era o que quisesse, uma raposa, um copo, o teu cabelo. E agora eu pensava com muita força e o meu corpo era feito de vidro, transparente e grosso, e dentro de mim estava a água que tu beberias sem pensar, uma água como todas as outras, sem cheiro nem sabor nem cor.  E agora eu era o teu cabelo e tu tocavas-me sem saber que cada fio era uma parte de mim, os meus dedos a minha boca as minhas costas. E agora eu pensava com muita força e transformava-me num animal furtivo e desaparecia sem rasto, na certeza de que o chão me levaria para um sítio onde o medo não podia entrar.

06 janeiro 2010

A brincar, claro

E agora eu era uma máquina perfeita que ninguém conseguia desmontar, uma máquina sólida feita de ruídos e silêncios desordenados. Encostavas o ouvido ao meu braço feito parede de metal e não ouvias nada, procuravas no ângulo recto da minha coxa e tentavas decifrar um cortejo quase imperceptível de barulhos metálicos. E agora eu era uma máquina lisa, sem brechas nem mossas, e a tua presença não era mais do que o calor de um corpo vencido pela solidão do metal.

10 dezembro 2009

A brincar, porque sim

E agora eu era um homem grande e pesado e forte e abandonava este corpo onde os músculos desaparecem na redondez de um corpo de mulher. Agora eu era um homem de voz grossa e barba dura que avança pelos dias sem hesitações nem medos, um homem que distribui murros em mesas e certezas em monossílabos angulosos. E agora eu era um homem e entrava em ti para descobrir os cantos escondidos do teu corpo, até desaprenderes todas as palavras e não restasse mais do que o meu nome feito ladaínha no teu sangue.

29 junho 2009

A brincar

E agora eu era tua escrava e velava o teu corpo adormecido à noite, decorava os rios das tuas veias, os ângulos e curvas das tuas colinas, numa silenciosa lição de geografia. E agora eu era tua escrava e servia-te o meu corpo ao jantar, o meu corpo em pedaços que são afinal todos teus e só por um estranho acaso estiveram à minha guarda durante estes anos. E agora eu era tua escrava e abandonava-me a ti para que me usasses como e quando quisesses, um tapete um objecto um bicho. E agora eu era tua escrava, abria-te o peito e lambia o teu coração até que ele não fosse nada mais do que uma bomba perfeita coberta pelo meu amor líquido por ti.

16 julho 2008

só a brincar

E agora eu era arqueóloga e desenterrava pedaços minúsculos de passados distantes, o fragmento de um prato, um osso amarelecido, pedaços minúsculos de passados distantes onde fui feliz infeliz alegre solitária, provas irrefutáveis da minha existência ao longo dos dias e noites até chegar a este momento em que brinco mais uma vez, agora eu era arqueóloga e varria a terra que cobria um objecto informe até encontrar a veia do meu coração.

11 junho 2008

Sempre a brincar

E agora eu era um fantasma e fazia mexer os objectos à tua volta, a chávena do café que se entornava nas tuas calças e tu a ires para o trabalho com a vergonha de uma mancha tão suspeita, o espelho da sala que se despedaçava aos vossos pés e atirava o beijo que lhe ias dar para a pá onde recolhias os pedaços de vidro, eu era um fantasma e via o teu medo crescer com a minha presença invisível nos teus dias, a incredulidade nos teus olhos enquanto perseguias os objectos que fugiam de ti, a escova de dentes afinal na cozinha os restos do jantar na tua cama o telefone no frigorífico as nossas fotografias por todo o lado, até transformar a tua nova vida no inferno etéreo em que estou agora.

29 maio 2008

A brincar, ainda

E agora eu era terrorista e passava os meus dias e noites mergulhada nas páginas que me ensinavam a fabricar a bomba com que iria conseguir o que até agora me foi impossível, despedaçar-te em dezenas de pequenos bocados, o olho esquerdo, a mão direita, o sorriso fácil, pedaços perdidos no chão que eu hei-de apanhar com uma paciência de coleccionista, os tornozelos magros, o olhar míope, o silêncio afiado, pedaços perdidos que eu vou estudar com dedicação religiosa, a barriga ainda lisa, as palavras que nunca me disseste, pedaços perdidos com os quais vou ensaiando outros tus, o canto da boca, a barriga da perna, a sombra oblíqua, até conseguir encontrar a combinação perfeita que nunca encontrei em ti.

08 abril 2008

Ainda a brincar

E agora eu era freira e abandonava a vida terrena e as suas pequenas agitações diárias. Largava o despertador e a casa de banho onde reconstruo todas as manhãs em frente ao espelho os cacos que a noite espalhou por mim, largava o trânsito e os programas de rádio sorridentes que me acompanham no caminho para o inferno diário de nove horas de secretária, largava os almoços engolidos num balcão qualquer ou em cantinas feitas de filas de gente como eu, largava os fins de tarde de rotina e de pressa ou de vontade de fingir que sou outra coisa que não isto que aqui está. Agora eu era freira e acordava todas as manhãs para um dia de recolhimento e oração, quando olhasse não via cacos mas uma monja que acorda para mais um instante de eternidade, agora eu era freira e tudo se arrumava dentro de mim em avémarias e paisnossos feitos de fé e da certeza de que tudo está no seu lugar.

22 março 2008

A brincar, outra vez

E agora eu era enfermeira e tinha-te para mim durante um dia. Media a febre, sentia a tua pulsação, moldava as almofadas num colo que não te posso dar, vigiava-te o sono com um desvelo missionário, a cabeça tombada para a esquerda e a minha mão a endireitá-la de novo, o braço que se mexe com um sonho onde não entro, será que pensas em mim enquanto dormes?, o sorriso que aparece e desaparece com os teus olhos fechados, ouvirás o que te digo enquanto dormes?, a voz que finalmente aparece ao fim de horas de contemplação minha de ti, tens fome e trago-te o prato, levo o garfo à boca e invejo-o porque por instantes está na tua boca na tua língua nos teus dentes, limpo tudo e corro de novo até à tua pulsação à febre que não tens e sei que sou a pessoa de que precisas para todas estas pequenas coisas. E quando o dia chega ao fim, limpo-te o corpo com uma esponja húmida, descubro a tua perna, o teu ombro e o côncavo da barriga e nesse momento sou feliz.

20 março 2008

A brincar

E agora eu era puta e tinha um quarto onde recebia homens. Todo forrado a encarnado e com um espelho pendurado no tecto, claro. Um espelho onde eu pudesse espreitar as costas deles e a forma como se afundavam em mim. Entravam, faziam e saíam. Não eram só eles que faziam: eu também fazia. Eu mandava. Agora eu era uma puta, não tinha medo dos homens e dos seus gestos bruscos ou suaves. Entravam e eu tirava-lhes a pinta, este não consegue foder com a mulher, este não tem mulher, este trabalha demais para esquecer que existe. E agora eu era puta e largava os medos e a vida voltava a ser minha .