16 setembro 2014

Setembro

Lembro-me dela desde sempre. Sentada na sua sala a ler, enquanto a minha irmã e eu brincávamos com as casinhas que nos trazia de Nova Iorque. Lia muito. Jornais, livros, muitos livros. A minha avó ficava ali sentada, calada, e nós brincávamos com brinquedos que não existiam cá, uma escola, as casas da rua sésamo, a quinta, o aeroporto, os legos antigos que tinham sido dos nossos tios. Noutra sala, o meu avô ouvia música muito alto, tinha o radiador junto dos pés, um copo de conhaque no chão, caramelos escondidos num armário. Vivemos catorze anos na casa por cima deles. 
De vez em quando, o jogo de canasta com as amigas era lá em casa. Nós descíamos as escadas, ficávamos entre as duas mesas onde ouvíamos falar de bestes e flores. Os jogos pareciam intermináveis. Nunca mais chegava a hora do chá, a que horas é o lanche Avó? Bolos, pães, doces, o cheiro do pó de arroz e dos perfumes, a elegância dos gestos das tias das canastas que depois imitávamos, sumo em chávenas pequenas e nós as duas a sermos senhoras crescidas também, oito senhoras e duas miúdas em volta da mesa oval da casa dos meus avós. O aparador, o carrinho de chá, o louceiro com três jarros em cima, uma tela com uma vaga nossa senhora na parede, o soalho de madeira que chiava com os nossos passos. A minha avó levava-nos aos jogos de canasta nas casas das amigas, o pó de arroz, os perfumes, os bestes, o melhor lanche era em casa da nossa tia gogó, uma sala de jantar enorme, a conceição que mandava na casa e fazia a melhor trança do mundo, o tio salvador que dizia 'cautela' e se ria baixinho de tudo. A casa dos meus avós era a nossa casa, sabíamos os sítios de tudo, a cubinhos de marmelada na mesa de cabeceira do avô, os álbuns de fotografias dos seis filhos, o pote das bolachas. 
A casa dos avós era a nossa casa até ontem. Dez anos depois do marido, nove meses depois do filho, a minha avó morreu ontem, uma segunda feira de chuva de setembro. 

3 comentários:

dancarbossanova disse...

a minha, quase há 6 anos, no dia de natal. não chovia. a casa dela continua a ser minha, a ser nossa. ainda agora lá estamos as duas, a peneirar a farinha para os scones. um beijo querida oito

gerou-se a confusão natural disse...

A casa da avó, da minha, porque foi a única a quem me afeiçoei, permanece na minha pituitária e faz parte das mais doces memórias de pequenina. Era ali que eu me sentia feliz e em paz. Um abraço, queridas oito.

sete e pico disse...

a casa dxs avós e avôs têm um cantinho especial no nosso coração. Assim como eles e elas. É triste quando os perdemos. Mais um abraço querida oito.