Sabes pá, há dias em que se acorda já com a raiva do que se foi e do que não se chegou a ser. E ela, a puta, irreprimível, a bailar entre a goela e o ventre, come-nos por dentro e nós a querer expulsá-la a cada expiração e ela, insidiosa, provocadora, que não vai, não vai.
Acendo um cigarro, ponho o café a aquecer no pucarinho de alumínio, dou um golo e travo já o fumo de outro cigarro, abro e fecho as portas da varanda que atravesso num e noutro sentido e sempre sem saber onde vou quando as passo para o interior.
Por que razão a raiva, pergunto eu. E por que não?, torno. E por que raio de moralidade tenho de me sentir pecadora ou culpada pela sua existência dentro de mim? E que culpa tenho eu que ela tenha vindo cá morar? Não a chamei e até nem consigo conviver muito bem com ela, mas enviaram-ma com muito carinho e tenho de a aceitar.
Vou sair, penso, e transformar em passos sincopados a dor que vai cá dentro. Caminharei por algumas horas sobre os passeios desta cidade. Paro em frente à montra de uma sapataria, entro a medo que o dia não se conjuga com o verbo confiar-em-si. E olha, vê tu bem, transformei a tal coisa que tinha cá dentro num par de sapatos que para além de não muito caros, até são de salto alto, acessório que uma voz amiga me confiou não dar muito jeito mas fazer muito bem.
Hoje saí para a rua com 66 euros de raiva nos pés, que calquei, pisei, sacudi, esmaguei e acabei por abandonar nas pedras da calçada. A raiva, porque os sapatos, sendo de salto, fazem-me mesmo muito bem.