(ou outra forma de contar a guerra colonial)
Fotos do Fogo
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
A guerra deu na tv
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p´ra mim o cheio aceso
dos sítios tão remotos
e do corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso
Olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
"às suas ordens, meu tenente!"
E assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
Nesta outra foto, é manhã
olha o nosso sorriso
noite acabou sem ser preciso
sair dos sonhos de outras camas
para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas
estás são e salvo e logo
"viver é bom", proclamas
Eu nesta, não fiquei bem
estou a olhar para o lado
tinham-me dito: eh soldado!
É dia de incendiar aldeias
baralha e volta a dar
o que tiveres de ideias
e tudo o que arder, queimar! no fogo assim te estreias
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
Nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar, cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila
O meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terremotos
costumam desfocar as formas
matamos, chacinamos
violamos, oh, mas
será que não violamos
as ordens e as normas?
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
Álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
quando a recordo
sei que quase logo acordo
a morte dorme parada
nesta morada
aguçadamente escrito pelo sérgio godinho e enternecedoramente cantado por ele, Carlos do Carmo e Camané no ámbum "O Irmão do Meio".
2 comentários:
É uma das mais belas canções do álbum. E a Guerra dos nossos pais passou a existir apenas nos álbuns de fotografias como se dizia aqui em baixo. Abri-los era abrir todas as feridas, como se elas apenas ali vivessem, por isso permaneceram fechados. Eu abri agora alguns deles onde encontrei o meu pai ainda de corpo ileso mas com o semblante marcado por uma alma aos safanões.
O Camanecas e o Sérgios abem o que é 'baptismo de fogo', p.expl., ou andaram a ler o Hemingway nos intervalos do pó d'arroz - eu não sei - e a mnina sabe o que é 'a guerra dos nossos pais' ou só sabe que estiveram em África e o que eles contam, entr'as brumas da memória mas nem sonha o que é 'a guerra'?
(tá dar, o tema, 40-e-tal anos depois... não é?)
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