A
questão nem sequer é exactamente Gaza. Porque podia não ser Gaza e ser outro
local remoto do planeta, ou até mesmo aqui ao lado. E também não é a justiça ou
injustiça do que lá se passa. Porque nenhuma guerra é justa. A questão é a
imagem no espelho que esta guerra fratricida nos devolve.
Enquanto
centenas, muitas centenas, são dizimadas e espoliadas do pouquíssimo que já era
o seu mundo, uma imensa maioria continua no seu mundo ridiculamente comezinho -
afinal, Gaza ali tão longe. Continuamos alegremente a “postar” postas de
pescada nas páginas das redes sociais, fotografias de um pretenso ameno verão,
queixando-nos, é certo, do tempo que vai incerto, comentários acerca do
concurso de domingo que nos traiu, imagens das jarrinhas de flores que enfeitam
a casa, do creme para a cara infalível no combate às rugas, selfies, festivais
sazonais, e mais uma selfie sem percebermos que nos traímos a nós próprios,
porque a humanidade é traiçoeira e entrou em colapso. E porque a vida continua,
é certo, e é também justo o júbilo por momentos felizes, partilhado com amigos
e com a família. Mas a dimensão da indiferença tem-me feito pensar muito. Por vivermos
de tal forma autocentrados e por ela ser o reflexo do medo; o medo de nos
manifestarmos, o de tomarmos partido por uns ou por outros com toda a exposição
perante o olhar crítico dos 666 amigos que temos na rede e que podem, afinal,
guardar de “mim” uma imagem de amigo dos árabes, que são aqueles que quiseram
as crenças sociais transformar em preguiçosos, bombistas, violadores dos
direitos das mulheres e umas tantas coisas mais. E caímos em desgraça porque ficamos mal na selfie!
Quando
eu era gaiata e que a televisão tinha, como dizia o meu pai, 1º e 2º esgoto, o
momento das notícias era quase solene em casa. Os adultos viam notícias em
silêncio e as crianças retiravam-se para os quartos, porque a elas era
permitido o alheamento. Hoje já ninguém vê notícias. Porque centenas de canais,
há sempre um que nos permite, enquanto o mundo é desfiado, assistir a um
qualquer estupidificante concurso de master qualquer coisa, chefe, gordo,
inteligente, mas sempre master. Porque queremos assistir ao engrandecimento de
uma criatura que não conhecemos de lado nenhum, mas também à humilhação dos que
vão sendo eliminados. E mesmo que vejamos notícias, podemos sempre confundir os
tiros do Mundo com aqueles que ainda há pouco, mesmo antes de zappar, o Johnn
Wayne desferiu no índio malfeitor. Negamos a actualidade do Mundo, para negarmos a nossa própria actualidade.
Vivemos
tempos que nos reduzem a nada e pensamos sermos muito. O sistema financeiro
ocidental faliu, e questiono-me se essa falência será causa ou consequência da
falência de valores, ou se apenas de mãos dadas. O nosso mundo pequenino,
aquele em que cada um de nós gravita, longe, longíssimo de Gaza, está cheio de
pequenas guerras, marcado por intolerância, palavras amargas, provas de
individualismo e de indiferença para com o outro que, também ele, mora ali
longe ou que até talvez partilhe a mesma cama, mas a ele as suas dores, que eu
também tenho as minhas. E queremos fingir que tudo vai bem, porque enquanto o
pau vai e vem, folgam as costas. Também aqui não sei qual a ordem a atribuir;
se reproduzimos à escala micro o que vai mal na macro, ou se o macrocosmos
reflecte a instabilidade dos muitos microuniversos tumultuosos que temos
criado.
Não
sou indiferente, há muito, ao que se passa em Gaza. Como não sou com os
milhões de deslocados e de refugiados que temos por este mundo fora, vítimas de
guerra, de pobreza, de tiranias de senhores do mundo que os querem esfomeados
porque de barriga vazia não se pensa e é-se submisso. Mas sou ainda menos indiferente
a esta escravidão velada, silenciosa, que faz de nós seres passivos perante uma
humanidade em implosão. E não pense ninguém que a carapuça não me entra. A
verdade é que agora mesmo parto para o meu duche, visto-me e vou seguir a minha
vida. E talvez apenas porque o tempo não está de feição, lá pouparei o Mundo de
saber em que praia eu estou, coisa que lhe interessava de sobremaneira. Temos
pena.