25 julho 2014

E Gaza aqui tão perto


A questão nem sequer é exactamente Gaza. Porque podia não ser Gaza e ser outro local remoto do planeta, ou até mesmo aqui ao lado. E também não é a justiça ou injustiça do que lá se passa. Porque nenhuma guerra é justa. A questão é a imagem no espelho que esta guerra fratricida nos devolve.

Enquanto centenas, muitas centenas, são dizimadas e espoliadas do pouquíssimo que já era o seu mundo, uma imensa maioria continua no seu mundo ridiculamente comezinho - afinal, Gaza ali tão longe. Continuamos alegremente a “postar” postas de pescada nas páginas das redes sociais, fotografias de um pretenso ameno verão, queixando-nos, é certo, do tempo que vai incerto, comentários acerca do concurso de domingo que nos traiu, imagens das jarrinhas de flores que enfeitam a casa, do creme para a cara infalível no combate às rugas, selfies, festivais sazonais, e mais uma selfie sem percebermos que nos traímos a nós próprios, porque a humanidade é traiçoeira e entrou em colapso. E porque a vida continua, é certo, e é também justo o júbilo por momentos felizes, partilhado com amigos e com a família. Mas a dimensão da indiferença tem-me feito pensar muito. Por vivermos de tal forma autocentrados e por ela ser o reflexo do medo; o medo de nos manifestarmos, o de tomarmos partido por uns ou por outros com toda a exposição perante o olhar crítico dos 666 amigos que temos na rede e que podem, afinal, guardar de “mim” uma imagem de amigo dos árabes, que são aqueles que quiseram as crenças sociais transformar em preguiçosos, bombistas, violadores dos direitos das mulheres e umas tantas coisas mais. E caímos em desgraça porque ficamos mal na selfie!

Quando eu era gaiata e que a televisão tinha, como dizia o meu pai, 1º e 2º esgoto, o momento das notícias era quase solene em casa. Os adultos viam notícias em silêncio e as crianças retiravam-se para os quartos, porque a elas era permitido o alheamento. Hoje já ninguém vê notícias. Porque centenas de canais, há sempre um que nos permite, enquanto o mundo é desfiado, assistir a um qualquer estupidificante concurso de master qualquer coisa, chefe, gordo, inteligente, mas sempre master. Porque queremos assistir ao engrandecimento de uma criatura que não conhecemos de lado nenhum, mas também à humilhação dos que vão sendo eliminados. E mesmo que vejamos notícias, podemos sempre confundir os tiros do Mundo com aqueles que ainda há pouco, mesmo antes de zappar, o Johnn Wayne desferiu no índio malfeitor. Negamos a actualidade do Mundo, para negarmos a nossa própria actualidade.

Vivemos tempos que nos reduzem a nada e pensamos sermos muito. O sistema financeiro ocidental faliu, e questiono-me se essa falência será causa ou consequência da falência de valores, ou se apenas de mãos dadas. O nosso mundo pequenino, aquele em que cada um de nós gravita, longe, longíssimo de Gaza, está cheio de pequenas guerras, marcado por intolerância, palavras amargas, provas de individualismo e de indiferença para com o outro que, também ele, mora ali longe ou que até talvez partilhe a mesma cama, mas a ele as suas dores, que eu também tenho as minhas. E queremos fingir que tudo vai bem, porque enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. Também aqui não sei qual a ordem a atribuir; se reproduzimos à escala micro o que vai mal na macro, ou se o macrocosmos reflecte a instabilidade dos muitos microuniversos tumultuosos que temos criado.

Não sou indiferente, há muito, ao que se passa em Gaza. Como não sou com os milhões de deslocados e de refugiados que temos por este mundo fora, vítimas de guerra, de pobreza, de tiranias de senhores do mundo que os querem esfomeados porque de barriga vazia não se pensa e é-se submisso. Mas sou ainda menos indiferente a esta escravidão velada, silenciosa, que faz de nós seres passivos perante uma humanidade em implosão. E não pense ninguém que a carapuça não me entra. A verdade é que agora mesmo parto para o meu duche, visto-me e vou seguir a minha vida. E talvez apenas porque o tempo não está de feição, lá pouparei o Mundo de saber em que praia eu estou, coisa que lhe interessava de sobremaneira. Temos pena.  

1 comentário:

não, não sou um robô disse...

clap clap clap