Não tive dúvidas. Mal tinha ainda entrado naquela que é agora a minha casa, já a sabia minha, como se de alguma forma eu já a habitasse. Percorri os espaços com uma não estranheza que chegava a ser inquietante. E foi ao chegar à cozinha que vi, para lá da janela, a árvore a que passei carinhosamente a chamar a minha árvore.
Era grande, majestosa até, linda, com o sol as folhas ganhavam diferentes verdes. Senti-a como um elemento protector e detinha-me horas a fio a beber o meu café matinal e a olhar para ela. Uma árvore perde as folhas a cada outono que passa, assim como nós perdemos o cabelo e ficamos mais tristes. Mas a primavera renova-a, traz-lhe vigor e a esperança de ser de novo habitada. Eu via-a perder a alegria a cada dia mas não a força. Nela pousava quase todas as manhãs um melro, não sei se o mesmo ou se vários, com o qual me habituei a uma troca de assobiadelas. Fascinaram-me sempre, os melros. Penso muitas vezes que eles transportam a alma de pessoas que amei e que, como eu, se entregavam facilmente a uma conversa assobiada. E como são simples! Completamente negros, com o bico laranja. A beleza que lhes vem da simplicidade.
Há dias fui sobressaltada com o som seco e frio de um machado que, aos poucos, desmembrava a minha árvore, sem qualquer amor, sem qualquer emoção. Parece que largava muitas folhas e que a vizinhança se queixava dos estragos e do lixo.
Da minha árvore sobra um coto. Morreu a esperança de a ver tornar-se verde. A minha cozinha está despida e pela janela só o branco sujo dos muros mas não a vida. Em mim, ficou maior o medo do uso dos possessivos. Tanto a que eu chamei meu e que a vida (ou a morte) me levou em escassos meses.
O melro, não sei se o mesmo ou se outro, canta agora numa outra árvore num quintal lá adiante. Não sei se tem quem fale com ele. Espero que sim porque eu sinto-lhe a falta.
3 comentários:
Coitadinha, conheço bem essa dor!
é triste quando nos querem tirar as árvores que alimentam a nossa alma todos os dias quando as vemos, que fazem parte das nossas casas, da nossa rua, do bairro. poe uma casinha para pássaros na varanda e umas flores, pode ser que assimvolte o melro e traga outros amigos também.
a falta de pudor em matar o que está vivo e bem de saúde é ainda mais chocante que isso. como uma árvore que para mim significava tanto para os outros significava lixo. devem ser estas as mesmas pessoas que não aguentarão ver os parceiros e parceiras envelhecer e ganhar rugas e perder dentes e ganhar artroses e perder memória... ainda bem que a natureza me concedeu dois braçoes e uma pá e uma vassoura como extensão dos mesmos. era com eles que eu apanhava as folhas diariamente.
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