10 janeiro 2012

à berlinda ao serviço da pátria

Outro dia o meu pai, numa viagem de carro a propósito de umas fotografias de que precisava, contou-me que uma vez, acabado de vir da guerra e precisando de renovar o bilhete de identidade, foi tirar uma fotografia numa qualquer fotomaton. Sentou-se no banquinho giratório ajustado á sua medida, olhou em frente, e não aguentou, desatou a gritar e a correr dali para fora, assustado pelos sucessivos flashes da máquina. O meu pai disse que a minha mãe contava isto como uma história divertida, em que ela se escangalhava a rir (quando ria com gosto a minha mãe era mesmo muito efusiva). Mas ao contrário, continuou ele com um certo pesar, já punha um tom mais sério quando contava a história do senhor neves, quando recém regressado de angola ao serviço da pátria, que uma vez estava num café quando o empregado deixou cair a bandeja grande e metálica no chão e imendiatamente ele se pôs debaixo da mesa. Acho que o meu pai se lamentava por ela reconhecer o senhor neves como um afectado da guerra e não reconhecer nele as consequências da guerra. Com este episódio dei-me conta que ultimamente por uma razão ou por outra, a guerra colonial anda na berlinda da minha vida. Quase todas as minhas amigas têm pais que foram à guerra, que partiram jovens e foram fazer uma guerra que não era sua.. Alguns tentaram ser refugiados em frança ou na suiça mas poucos o conseguiram. A julgar pelo meu pai e pelo que vou pescando dos seus, só muito de quando em quando falam desse tema, até podem analizá-lo, racionalizá-lo enquanto fenómeno politico e social condenável, obviamente com motivos económicos identificáveis, com consequência sociais e até psicológicas para os soldados da guerra, esse ente externo e estranho, mas, portas dentro de casa e de si, fez-se silêncio, já passou, não se fala para que ele não possa viver de novo, a gente tem que ser forte e ninguém quer ser um inválido de guerra, o que lá vai lá vai, os miudos ainda podem ficar impressionados. Ou então contam os seus actos de bravura, elogiam os seus reflexos apurados, a sorte, a camaradagem e as dificuldades com os outros como eles. Pouco dizem sobre o horror do que viveram, ainda que este às vezes se lhes escape surdo nos pesadelos que lhes trazem de novo o que viveram na guiné, moçambique ou angola. Talvez esse não dizer seja uma forma de apagar esse tempo, ou talvez não consigam encontrar dentro de si as palavras para contá-lo sem que volte a fazer-lhes mal. Talvez se tenham convencido de facto que já passou. Mas ela esteve aí, a guerra colonial existiu, a que conhecemos e a que adivinhamos. Afectou os nossos pais, as nossas mães, as nossas familias e até a nós, que tentamos conhecer e compreender melhor a presença surda e muda desse tempo que anda à berlinda nas nossas vidas.

4 comentários:

gerou-se a confusão natural disse...

disseste tudo. creio que toda a vida tentei compreender quem era o meu pai, por que raio tinha eu uma família estranha, o porquê dos seus silêncios mas também o das suas erupções. um abraço, minha querida 8.

dizia ela baixinho disse...

em tardes de conversa com a minha mãe - onde vou tentando resgatar pedaços de histórias de família que nunca teve tempo ou paciência para me contar - soube há pouco tempo como um tio avô paterno, numa comissão em angola, enfermeiro do seu pelotão, se substitui ao médico por este não ter aguentado o que ali se passava (ou enlouquecido, nas palavras da minha mãe). em muitos meses no meio do mato, safou camaradas e população nativa. vi-o uma vez. não era alto como o meu pai. mas tinha a mesma dignidade, a mesma coragem e o mesmo aperto de mão firme.

-pirata-vermelho- disse...

Fica bem o reconhecimento mas a melhor forma de acompanhar 'o seu pai' é deixá-lo consigo mesmo quando (pouco) fala ou quando não fala.

Não há ajuda a dar.

Para além disto, so se encontra conversa fútil para vender livrecos e coisas de televisão.

gerou-se a confusão natural disse...

é de uma profundidade estonteante, este nosso comentador