Acto II
No átrio de entrada do Centro de Formação, as pessoas preenchem dados incompletos nas fichas de inscrição e eu também recebo uma da senhora sentada à secretária. Preencho a ficha e pergunto se falta alguma coisa. A senhora anafada e cheia de afrontamentos faz um esgar, leva as mãos à boca e tem o maior ataque de tosse registado no último século. Em meia dúzia de segundos percebo o quanto me deixei afectar pelas últimas notícias dos jornais. Quero levantar-me dali com um salto e correr a fugir da possível gripe e prego a todos os deuses por uma máscara. O medo absurdo de cair no rídiculo impede-me de me mexer, bem como a todos os outros presentes e fico ali a meio metro da fera, a piscar os olhos com olhar complacente enquanto ela despeja as bactérias todas em cima de mim.
Na sala de aula estão à volta de 40 pessoas e o formador. Reparo sobretudo em duas pessoas. A senhora ao meu lado que gostava de brilhantes. Toda ela brilhava. Pequenos fio embutidos no têxtil do casaco brilhavam como fios de oiro. A mala doirada poisada em cima das pernas cruzadas. Cabelo de permanente em carapinha. Cinquenta anos de idade, imagino. Pulseiras e fio com banho de oiro. Relógio gordo e exuberante cravejado a diamantes falsos mas desta vez em prateado. Caneta para tirar apontamentos também doirada. Mas o que me espanta verdadeiramente naquela senhora é uma incrível característica. Durante todo aquele período até às 18 horas da tarde, quando todos os restantes batem o pé, trocam de posição nas cadeiras desconfortáveis, suspiram de ânsia, desenham rabiscos abstractos nas bordas dos cadernos, aquela senhora cor de sol consegue manter-se hirta como se embutida em cimento, sem mexer um centímetro do corpo, sem inclinar o pescoço sequer para olhar para o bloco de apontamentos bastando-lhe revirar os olhos, sem trocar a ordem dos pés cruzados, sem abrir a boca, sem olhar para o lado. Fabuloso.
A outra personagem em que reparo é uma rapariga nova, trinta e tal anos. Num dos intervalos vem falar comigo, diz.me que é psicóloga desempregada. Fala a cem à hora como se estivesse carregada de coca e tremem-lhe as mãos a segurar o cigarro. Pergunta se ouvi falar de um incêndio numa casa que até passou no telejornal e conta-me que era a casa do namorado com quem ela vivia e que ela tinha perdido as coisas todas que lá estavam dentro. Cinco minutos depois, fala-me da tragédia do namorado que faleceu recentemente. Pergunto-lhe se está a falar do mesmo namorado a quem tinha ardido a casa e ela confirma. Estava condenado ao azar aquele rapaz, penso eu no momento em que ela tira os óculos escuros da cara e olha para mim com um ar muito desolado pronta para iniciar a tragédia seguinte. Pois, entretanto fiquei cega de um olho...
Depois deste momento único que tem tendência a provocar a gargalhada nervosa que tive de conter à força para não ferir susceptibilidades, voltámos à aula para continuar a ouvir o discurso do formador de escrita que parecia só ter lido uma única autora durante a vida. Enid Blyton. Entre as 9 da manhã e as seis da tarde, aquele homem, quarentão, timbre de voz a fazer lembrar o Prof. Marcelo, preocupou-se e bem em oferecer-nos alguns exemplos de boa literatura. Mas todos eles pertenciam ao universo das aventuras dos Cinco. Pensei que triste era não ter ali agora o famoso cão Tim para lhe morder o rabo.
Caralhosmafodam! O dia estava a correr bem.
No átrio de entrada do Centro de Formação, as pessoas preenchem dados incompletos nas fichas de inscrição e eu também recebo uma da senhora sentada à secretária. Preencho a ficha e pergunto se falta alguma coisa. A senhora anafada e cheia de afrontamentos faz um esgar, leva as mãos à boca e tem o maior ataque de tosse registado no último século. Em meia dúzia de segundos percebo o quanto me deixei afectar pelas últimas notícias dos jornais. Quero levantar-me dali com um salto e correr a fugir da possível gripe e prego a todos os deuses por uma máscara. O medo absurdo de cair no rídiculo impede-me de me mexer, bem como a todos os outros presentes e fico ali a meio metro da fera, a piscar os olhos com olhar complacente enquanto ela despeja as bactérias todas em cima de mim.
Na sala de aula estão à volta de 40 pessoas e o formador. Reparo sobretudo em duas pessoas. A senhora ao meu lado que gostava de brilhantes. Toda ela brilhava. Pequenos fio embutidos no têxtil do casaco brilhavam como fios de oiro. A mala doirada poisada em cima das pernas cruzadas. Cabelo de permanente em carapinha. Cinquenta anos de idade, imagino. Pulseiras e fio com banho de oiro. Relógio gordo e exuberante cravejado a diamantes falsos mas desta vez em prateado. Caneta para tirar apontamentos também doirada. Mas o que me espanta verdadeiramente naquela senhora é uma incrível característica. Durante todo aquele período até às 18 horas da tarde, quando todos os restantes batem o pé, trocam de posição nas cadeiras desconfortáveis, suspiram de ânsia, desenham rabiscos abstractos nas bordas dos cadernos, aquela senhora cor de sol consegue manter-se hirta como se embutida em cimento, sem mexer um centímetro do corpo, sem inclinar o pescoço sequer para olhar para o bloco de apontamentos bastando-lhe revirar os olhos, sem trocar a ordem dos pés cruzados, sem abrir a boca, sem olhar para o lado. Fabuloso.
A outra personagem em que reparo é uma rapariga nova, trinta e tal anos. Num dos intervalos vem falar comigo, diz.me que é psicóloga desempregada. Fala a cem à hora como se estivesse carregada de coca e tremem-lhe as mãos a segurar o cigarro. Pergunta se ouvi falar de um incêndio numa casa que até passou no telejornal e conta-me que era a casa do namorado com quem ela vivia e que ela tinha perdido as coisas todas que lá estavam dentro. Cinco minutos depois, fala-me da tragédia do namorado que faleceu recentemente. Pergunto-lhe se está a falar do mesmo namorado a quem tinha ardido a casa e ela confirma. Estava condenado ao azar aquele rapaz, penso eu no momento em que ela tira os óculos escuros da cara e olha para mim com um ar muito desolado pronta para iniciar a tragédia seguinte. Pois, entretanto fiquei cega de um olho...
Depois deste momento único que tem tendência a provocar a gargalhada nervosa que tive de conter à força para não ferir susceptibilidades, voltámos à aula para continuar a ouvir o discurso do formador de escrita que parecia só ter lido uma única autora durante a vida. Enid Blyton. Entre as 9 da manhã e as seis da tarde, aquele homem, quarentão, timbre de voz a fazer lembrar o Prof. Marcelo, preocupou-se e bem em oferecer-nos alguns exemplos de boa literatura. Mas todos eles pertenciam ao universo das aventuras dos Cinco. Pensei que triste era não ter ali agora o famoso cão Tim para lhe morder o rabo.
Caralhosmafodam! O dia estava a correr bem.
1 comentário:
Inventar para quê?, quando já tudo existe e só está à espera de ser descrito?
Que dia do caralho. E que pinta de pena a tua que pintou este retrato.
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