16 setembro 2006

o saque

-'Tá escuro aqui.
-Segue...
-Fred...
-Segue... não pares.
Os vidros estilhaçados sob os pés dela dificultavam o andar e tinha a certeza que sentia alguns espetados nas fracas solas de borracha dos seus ténis. Acabara-se a pilha da lanterna, ironicamente ali mesmo dentro da loja de conveniência onde nem sequer podia procurar mais pilhas porque não via um palmo à frente da cara e era constantemente encandeada pela luz das lanternas das outras pessoas. Atirou a sua para dentro de um dos quatro sacos que carregava nas mãos. Quando olhava para trás não via Fred, tapado pelo enorme caixote que transportava, somente os seus pés cautelosos caminhando ainda mais devagar do que os dela. Mais ninguém se movia a esta velocidade. Até à saída do estabelecimento, os gritos de histerismo, uma amálgama de medo, stress e alegria vazia de qualquer discernimento afundavam-se nos seus ouvidos e a correria dos caixotes que os iam atropelando pelo caminho parecia não ter fim. O ar da rua apanhou-a de frente ao cruzar a saída e engoliu uma golfada de ar como se fosse limonada fresca. Ali já conseguia ver o caminho à sua frente, cortesia das luzes dos carros da polícia, de portas escancaradas e espalhados por todo o quarteirão. Os membros das forças policiais pareciam tão lívidos quanto ela, tinham as armas mas não o número e com a fraqueza assim exposta eram apedrejados e pontapeados em todos os lugares por onde passavam e se tentavam impor. Um enjoo descomunal começou a subir-lhe do ventre saliente até à garganta sem pré-aviso.
-Fred...
- Não pares mulher, não falta muito
Ela engoliu em seco. Alguém disparava tiros para o ar e em todas as direcções e Fred empurrava-a com o caixote encostando-o aos seus rins para que caminhasse mais depressa. Gritos aflitivos de mulheres. Uma pedra atingia violentamente o caixote que Fred levava.
-Eu estou bem, gritou lá de trás, não me acertou, continua, estamos quase lá.
Uns metros à frente deles caía um rapazote no chão com um gemido de derrota tão violento que os seus tímpanos quiseram explodir. Alguém da família do rapaz, provavelmente a mãe, em gritos intensos de agonia, tentava arrastá-lo do meio da estrada para qualquer recanto mais seguro puxando-o por um braço mas as suas forças para aguentar com um peso morto eram escassas e o rapaz retorcia-se com dores e gritava com ela tentando dissuadi-la, mandando-a fugir para casa. Outro tiro saído da escuridão mais profunda e a senhora também caiu, postrada, como um pedragulho inerte. O rapaz não disse nada, libertou-se da mão que ainda lhe agarrava o pulso e encolheu-se numa posição fetal.
-Não olhes amor, não olhes, são só mais uns metros até ao carro, implorou Fred sentido-lhe os tremores no corpo.
Ela sentiu uma enorme dor no ventre ao mesmo tempo que tentava conter os vómitos.
-Está ali o nosso carro amor, consigo vê-lo daqui.
Sim, ali estava o carro, de portas escancaradas e vidros partidos como todos os outros. Ela pousou os sacos no chão pensando que ia morrer logo ali mas Fred cortou-lhe a alucinação com um gritinho optimista.
-Não furaram os pneus!
Agarrou num dos seus sacos despejando todo o seu conteúdo em cima do banco traseiro e colocou o saco vazio por cima do banco da frente para ela se sentar sem apanhar vidros. Fechou as portas e esperou dois segundos para ver se era seguro antes de tirar as chaves do bolso das calças.
-Vamos sair daqui, já acabou amor.
O ar navegava sem Timoneiro dentro do carro que se deslocava como podia ao longo da Avenida, desviando-se do arsenal de electrodomésticos, mobiliário, corpos sentados, deitados, em pé sempre acompanhados com o background sonoro das sirenes da polícia e das ambulâncias mas sabia-lhe bem. Uma estranha indiferença apoderara-se do seu raciocínio lógico. Só queria chegar a casa. Evadir-se daquele corpo estrangeiro que lhe doía incessantemente. Fred ostentava um ar vitorioso nas faces rosadas. Sentiu-se adormecer no embalo do caminho. Acordou no sofá da sala. Fred ligava o enorme aparelho de Tv com grande aparato de satisfação. Olhou-a nos olhos e correu até à cozinha aparecendo com um enorme copo de leite quente e uma torrada.
-Para ti...
A luz voltara. Quente como o cobertor eléctrico que te enrola os pés e te faz acreditar que o Inverno nem está lá fora.
As notícias que passavam no enorme écran do televisor novo eram aterradoras. As míseras horas que haviam passado mostravam séculos de história, valores e costumes a cairem como cereais dentro duma taça de leite. O sistema trémulo, onde apenas o medo parecia decretar as "boas" acções. Tinha sido o maior Blackout de sempre. Agora era tempo de reconstrução.
-Fred...
-Diz amor.
- Nós somos isto?, perguntou ela apontando para a televisão.
- Nem sempre amor. Descansa.

4 comentários:

dizia ela baixinho disse...

O nome dele era Fred. E a sósia como se chamava?

8 e coisa 9 e tal disse...

hermengarda, claro.

8 e coisa 9 e tal disse...

que pergunta senhora agente..

dizia ela baixinho disse...

ah!

roger and over, co-chefe.