Nasceu no século XIX e era completamente maluca. Viúva rica, sem filhos, vivia sozinha numa espartana casa gigante, rodeada de árvores ainda maiores, no meio do nada. Conduzia um Renault 4L muito velho, azul-escuro, que me servia de abrigo para as brincadeiras em dias de tempestade, os mesmos em que ela usava umas estranhas toucas de plástico transparente para não molhar o cabelo, branco de neve e sempre meio desgrenhado pela brisa.
Tinha uma caligrafia de litografia, que eu admirava nos bilhetes dos meus presentes de anos que dava à minha mãe e que, invariavelmente, nunca eram para a minha idade. Falava com os espíritos do outro mundo e tinha cadernos inteiros com as transcrições dessas conversas. Corria (velozmente!) atrás de mim para me bater com a vassoura porque tinha assaltado os doces para o chá anual. Descompunha violentamente todas as melosas mamãs pelo crime hediondo de trazer mais uma criança ao mundo. Atirava o jardineiro da escada abaixo e arranja ela própria o telhado ou a torneira da enorme cisterna. Sei que se irritava comigo mas não me lembro de me dirigir uma palavra.
Passou a usar um aparelho nos ouvidos que insista em apitar estridentemente nos chás de domingo e abafava a conversa de torrada, onde pouco participava. Passou, também, a usar umas estranhas palas de cartão em cima dos aros dos óculos grossos, porque a luz a incomodava. Foi ela própria que as desenhou e recortou no cartão de uma embalagem, acho que de farinha. Depois, tiraram-na da sua grande casa isolada e puseram-na num apartamento.
Pouco antes de ser a primeira dos meus mortos, passou uma tarde lá em casa, com 99 anos, já encolhida, muito pequenina, numa estranha e morna beatitude com o meu cão psicopata. Nunca mais esqueci esse quadro. Aos meus olhos de 10 ou 11 anos, pareceu-me um recorte no mundo. Dois malucos intratáveis, ternos apenas entre si mesmos.
De vez em quando, falávamos nela e na sua estranheza. Com os anos, fui sendo apresentada à sua longa vida, aos seus pequenos grandes feitos feitos aos outros em silêncio e na altura em que é preciso. Sim, era psicopata. Mulher forte e generosa que teve a coragem de não negociar consigo própria ou com os outros só para tornar a vida mais fácil e que, assim, atravessou destemidamente dois séculos e duas guerras mundiais. Os meus estranhos presentes de anos eram, afinal, tesouros dela e são dos melhores que hoje tenho. “À sua, Tia M. A minha querida tia psicopata!”
Passou a usar um aparelho nos ouvidos que insista em apitar estridentemente nos chás de domingo e abafava a conversa de torrada, onde pouco participava. Passou, também, a usar umas estranhas palas de cartão em cima dos aros dos óculos grossos, porque a luz a incomodava. Foi ela própria que as desenhou e recortou no cartão de uma embalagem, acho que de farinha. Depois, tiraram-na da sua grande casa isolada e puseram-na num apartamento.
Pouco antes de ser a primeira dos meus mortos, passou uma tarde lá em casa, com 99 anos, já encolhida, muito pequenina, numa estranha e morna beatitude com o meu cão psicopata. Nunca mais esqueci esse quadro. Aos meus olhos de 10 ou 11 anos, pareceu-me um recorte no mundo. Dois malucos intratáveis, ternos apenas entre si mesmos.
De vez em quando, falávamos nela e na sua estranheza. Com os anos, fui sendo apresentada à sua longa vida, aos seus pequenos grandes feitos feitos aos outros em silêncio e na altura em que é preciso. Sim, era psicopata. Mulher forte e generosa que teve a coragem de não negociar consigo própria ou com os outros só para tornar a vida mais fácil e que, assim, atravessou destemidamente dois séculos e duas guerras mundiais. Os meus estranhos presentes de anos eram, afinal, tesouros dela e são dos melhores que hoje tenho. “À sua, Tia M. A minha querida tia psicopata!”
1 comentário:
Cheers!
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