28 setembro 2008

IndigNação

A mesma pessoa de sempre ao meu lado. Neste dia como em tantos outros da minha vida. Eu finjo que estou cool e descontraída, até digo umas piadas. Só deixo de gracejar quando a dor me paralisa o ventre e me devolve o pesadelo que estou a enfrentar.

Uma sala de urgências cheia, não há lugar para me/nos sentarmos, escolhemos o chão, passo os olhos pelo seu documento e forço o mais que posso a minha atenção num texto no qual não me consigo concentrar.

Desata um homem novo aos gritos: "Eu quero falar com o chefe da equipa, eu tenho direito, por vossa causa a minha namorada esteve aqui 4horas e meia a perder sangue e o nosso filho morreu"!. As outras mulheres põem a mão, mecanicamente, no ventre, não vão as palavras deste quase-homem azarar-lhes o seu percurso de 40 semanas. Pela demora, pela tristeza, ou por outro motivo qualquer, o rapaz desiste e vai embora, batendo a porta com estrondo.

A enfermeira manda esvaziar os lugares, que não pode ser, duas senhoras sentadas no chão. Sou finalmente chamada.

Sou mesmo tonta, vesti a bata ao contrário. A enfermeira traz a parafernália toda e diz-me: 'escolha a cama'. Escolho a que está mais perto da janela sem saber que esta nunca iria ser aberta. No meu quarto, de 4 camas, em diagonal comigo está uma rapariga ainda menor. Sorri-me e eu a ela. Trocamos nomes e cumprimentos. Levanta-se para ir jantar e ver a sua novela dilecta.

Entubada, olho para o meu carrinho de soro e de analgésicos. Espero pacientemente a visita da médica que porá cobro ao meu sofrimento. Julgava eu. 3horas e meias depois fecham-se as cortinas e administram-me a 1ª das 3 doses de misoprostol. Recomendações de não comer nem de beber uma só gota de água. 'E vai doer'? 'Ai isso não sabemos, as senhoras reagem de maneira muito diferente'.

4:30 am: a dor atingiu o seu pico. Sentada na cama capitulo e aperto pela primeira vez o botão. Vómitos, febre. Nova dose de analgésico via cateter. A noite é longa e passo-a em branco, a jogar uma parvoíce qualquer no meu telemóvel, talvez assim consiga mitigar a dor.

9:00 am: trocam-se os turnos, nova leva de auxiliares-enfermeir@s-médic@s. Ouço gente que toma banho e que toma o pequeno-almoço. A menina da cama em diagonal acorda e espreguiça-me um bom dia. Continuo para ali sem saber o que estou a fazer ali. Esqueceram-se de mim? Sim, claro que sim. Percebo que qualquer coisa não correu bem. A começar pelas duas doses de misoprostol que a enfermeira do turno da noite se RECUSOU a administrar-me (por considerar que era um 'acto médico'), soube-o mais tarde.

'Não quer ir lavar-se'? 'Isso parece-me uma muito boa ideia, mas com este atrelado não vejo como'. Arrancam-me o cateter do soro e dão-me uma mini-toalha para me secar. A água devolve-me alguma dignidade perdida.

11:00 am: chama-me a enfermeira, 'está cá o senhor doutor e vai vê-la'. Tem um sorriso largo tal como as mãos. 'E então expulsou muito'? 'Nem por isso'. Exames, dúvidas, pressão sobre o ventre. Nada. 'Quer alta'? Como não posso querer alta depois do inferno que passei, primeiro em casa e agora aqui? 'Mas o que lhe sugerem as imagens', atiro eu a medo? 'Não sei, não são conclusivas'. Mas quer um conselho? Vá para casa, era o que diria à minha mulher, à minha mãe, à minha filha!. Agarro-me como posso à sua assertividade.

E foi assim que fui para casa. O pior, não sabia eu, estava ainda para vir: uma semana de tortura a ver as entranhas a cairem-me pernas abaixo, a sangria desatada, a falta de força, as dores físicas. E ainda as outras.

Em suma: tive um aborto espontâneo e num hospital público deram-me alta, longe de reunir condições para ter alta, dando início àquela que foi uma das piores semanas da minha vida. Acenaram-me com uma baixa de um mês como quem acena uma cenoura a um burro, que entretanto declinei (não me servia para nada, também, dado o meu vínculo contratual).

Registo aqui a minha grande interrogação: como é possível que, para se poupar recursos - ao que parece - se induzam abortos quimicamente, deixando a mulher à mercê da sua dor e da sua sorte? Tudo o que possa dizer sobre este inferno que passei será sempre eufemístico: é desumano, é primitivo, não há palavras que descrevam um sofrimento destes. E depois a sempiterna dúvida: será que estou bem? Sim, porque a probabilidade de surgirem complicações ainda são bastante elevadas, nomeadamente infecções, muito comuns.

Agora, resta-me lamber o resto das feridas, maldizer o país onde vivo, onde voto e pago os meus impostos e mandar o Serviço Nacional de Saúde para a puta que o pariu: o Estado Português.

Adenda: a rapariga que partilhava o quarto comigo, teve uma gravidez ectópica. No dia em que tive alta, já lá estava há uma semana internada. Quando chegou ao hospital, tentaram a indução do aborto por via química. Surgiram complicações e a rapariga acabou por fazer uma curetagem, entre outros porque já tinha desenvolvido uma infecção séria. Ainda tinha mais dias de internamento pela frente. Venda-se este país a Espanha. Já.

12 comentários:

Anónimo disse...

Um abraço forte, querida oito.
tumtum.

choco disse...

ja passou miga..ja passou!!!!

Anónimo disse...

oito e coisa, que posso dizer...
Como Português pedir desculpa. Por viver num Pais em que as pessoas correm perigo de vida acrescido... numa urgência.

sem-se-ver disse...

venda-se este país a Espanha. JÁ!

Raquel A. disse...

Sinto muito mesmo. Até fiquei emocionada ao ler o post pq tb penso o mesmo em relação ao sistema de saúde pública que temos.. morro de medo cada vez que tenho q recorrer ao hospital.. não confio!

Força!

*BJS*

o chofer a dançar com a criada disse...

à minha querida múltipla que tanto sabe fazer-me lembrar sam shepard e os road movies, os meus parabéns por este naco muito bem descrito, da nossa pequenez social. haja paciência e saúde.

CCF disse...

Junto a minha
a tua indignação! São aos milhares estas tristes histórias e quase nunca chegam aos ouvidos de quem as devia escutar, era preciso encontrar um modo de nos fazermos ouvir.
~CC~

8 e coisa 9 e tal disse...

obrigada a tod@s, tumtum, choco, manyfaces, sem-se-ver, kitty, chofer, ccf.

abraço a tod@s, gostei dos vossos. :)

reafirmo que esta situação que acabei de viver é insana, é inconcebível, não tem pés nem cabeça e que os argumentos MAL AMANHADOS que nos dão no hospital mais não são do que uma desculpa vil para o Estado poder poupar alguns tostões em blocos operatórios, anestesias e 'pessoal'.

Será que poupa?

Mas não poupa a mulher, fisica e psiquicamente, os cuidados paliativos administrados são uma vergonha, o desrespeito transborda por todos os poros deste SNS.

Pois, uma forma de nos fazermos ouvir...

Da minha parte, e para começar, ainda voltarei àquele hospital e escreverei a minha indignação no tão-célebre livro amarelo.

Anónimo disse...

olá oito

Li agora o seu post indigNação.
Como tantas outras mulheres, também passei por um processo semelhante.
Há dois anos foi-me diagnosticado uma gravidez anembrionária. Esperei 3 semanas que a coisa se resolvesse só por si e, não tendo sucesso, fui internada no hospital (civil) onde a minha médica (particular) prestava serviço. Foi-me administrado um medicamento para dilatar o colo do útero, passei cerca de 24 horas deitada a sangrar mas como o material fetal não foi expulso, foi-me arrancado a frio com um forceps em duas intervenções separadas (chegou a ser mais doloroso do que a minha cesariana).
Segundo as médicas, não recorreram à curetagem para evitar um processo invasivo e de risco elevado, eu sempre achei que era a directiva do hospital para poupar custos.

Acho que o problema aqui nem é o procedimento médico e hospitalar mas sim o facto de nós, portugueses, estarmos tão habituados a ser mal tratados nas instituições tuteladas pelo estado e da desculpa da falta de recursos que nem ligamos quando somos somos negligenciados (como se pudesse ser normal ser maltratado em algum lado por falta de recursos).

É um bocado a mesma lógica que ouvi a uma mãe quando a minha filha entrou para uma escola oficial pela primeira vez: "nós aqui temos de nos nivelar por baixo".

Não concordo nada. Não temos de nos nivelar por baixo. Temos é de fazer queixas às autoridades competentes. E, se calhar, às incompetentes também.

Para mim é tarde, mas para si talvez não.

um beijinho.

foi dançar a bossa nova disse...

Querida Oito,
Tenho muita pena. Mesmo. Também estive numa dessas grandes instituições e as coisas que por lá vi eram de revoltar um santo. Escreve no livro amarelo e manda carta à administração a pedir explicações (com cópia para a entidade reguladora da saúde, onde identificas o n.º da reclamação do livro amarelo).

d. inês sequiosa disse...

O pesadelo aqui à esquina. Mais um abraço - e conta com a minha assinatura no contrato de venda de portugal a espanha. Olé.

Unknown disse...

Querida oito,
E triste o que se passou, mas mais triste e o saber que nao es, nem seras a unica a quem tal sucede.
tens implicitamente o meu apoio, a minha companhia e o meu carinho.