Há muito que não me lembrava como era dormir no meu quarto. Aquele onde ainda estão as fotografias de há alguns anos. Aquele que se lembra ainda de uma pessoa na qual já não me reconheço. Ocupo esta cama por uma estadia temporária, como sempre desde que resolvi que esta não era mais a minha casa, desde que decidi que não mais teria casa, desde que decidi que seria mais fácil assim.
Esta noite dormi nesta casa, neste quarto, nesta cama. Os livros, os móveis e as fotografias mantêm a mesma disposição mas habitam agora um espaço desprovido de vida. A história que contam é ora obsoleta, fala de histórias e de pessoas que o esquecimento deixou escapar. Adormeci a pensar nessas pessoas e nessas histórias que se tornam cada vez mais difíceis de recordar.
Acordei afogueada, com as lágrimas nos olhos. Matei-te e nem sequer o sabes. Matei-te no meu sonho. Tiveste uma morte estúpida. Estavas a andar, sonhei-te com o mesmo andar de sempre, aquele que por o conhecer tão bem não consigo descrever. Depois, distraído enquanto pensavas deixaste cair o pé em falso. Caíste tu também. A tua cabeça bateu contra a calçada, um único embate, forte e impetuoso. Os teus olhos azuis inertes contemplavam o céu. Um estranho correu até ti na tentativa de socorrer alguma esperança contraditória da realidade cruel que estava perante ele. Ajoelhou-se, apoiou a tua cabeça e ouviu as tuas últimas palavras. Chamaste a tua mãe, a tua irmã e o teu pai. E antes de fechares os olhos chamaste o meu nome. De repente o plano alterou-se. Estava numa sala pequena, no teu velório. Chorava e ouvia a descrição sentida do jovem estranho que tentou salvar-te.
Incrédula, levantei-me, ainda com medo que este não tivesse sido só um sonho e que alguma coisa pudesse não estar bem contigo. Mas não te liguei, por orgulho ou por medo. Escolhe tu.
Tomei banho e pensei que o melhor era tentar esquecer este sonho e fazer aquilo que me tinha proposto a fazer esta manhã. Bebi um café, fumei um cigarro e fui até ao registo civil. Quando cheguei dirigi-me à máquina de tirar senhas. Tirei uma e ansiosa peguei no papel que ditaria quantas horas teria de ali estar. O meu número era o trinta. Olhei para uma parede repleta de avisos aos senhores utentes. Avisavam-me que cada atendimento demorava cerca de vinte minutos. Eram 9h30 e o balcão de atendimento que registaria a minha nova identidade estava paralisado na senha número três. Era uma conta fácil. Vinte minutos por cada atendimento vezes vinte e sete pessoas que tinha à minha frente. Mas os números entrelaçaram-se na minha cabeça e os minutos eram tu e as vinte e sete pessoas à minha frente eram todas tu.
03 outubro 2008
Uma outra colisão
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5 comentários:
miga...nem sei o que te diga...muito sentido este post..nixxx
beijo..si ta besoin..apelle
spotdoxoco
Há dias em que os textos que leio aqui podiam ter sido escritos por mim há dez minutos seis meses ou dois anos. Estranha coisa esta de me rever nas palavras vossas. Um abraço.
com a devida vénia, faço minhas as palavras da d.inês. forte abraço
Estarei Ainda Muito Perto Da Luz
Estarei ainda muito perto da luz?
Poderei esquecer
estes rostos, estas vozes,
e ficar diante do meu rosto?
Às vezes, como num sonho,
vejo formas como um rosto
e pergunto: "De quem é este rosto?"
E ainda: "Quem pergunta isto?"
E: "E com quem fala?"
Estarei ainda longe de Ti,
quem quer que sejas ou eu seja?
Cresce a noite à minha volta,
terei palavras para falar-Te?
E compreenderás Tu este,
não sei qual de nós, que procura
a Tua face entre as sombras?
Quando eu me calar
sabei que estarei diante de uma coisa imensa.
E que esta é a minha voz,
o que no fundo de isto se escuta.
Manuel António Pina
de Nenhum Sítio(1984)
esta colisão nunca me enganou...
querida múltipla, que nos faças colidir muitas mais vezes.
beijos!
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