17 novembro 2009

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Numa manhã fria de Inverno um corpo, como se fosse um bibelot de cristal, caiu do cimo de um prédio de cinco andares.
A queda foi de uma doçura agonizante com se fosse uma pena que caía em câmara lenta a ondular, a rasgar devagarinho o ar gélido daquela manhã.
À medida que o corpo descia ia-se tornando mais transparente, mais rígido, mais imóvel.
Quando tocou o chão era já uma camada muito fina de vidro, delicado como um cristal da bohemia.
O contacto com o chão fê-lo partir-se em mil pedacinhos, tão pequenos que só se notavam porque derretiam o gelo que tocavam.
Do cimo do telhado ela olhava para o espectáculo por si provocado.
Como fora capaz? Outra vez? Mais uma vez? Porquê?

O ar contraiu-se e um bando de corvos rasgou o céu na sua direcção com grasnares quase humanos.
Correu, correu pelo prédio abaixo com desespero, tropeçou num tapete, bateu com força no varão das escadas com a sua coxa direita, e foi à procura de si no meio da neve que se ia acumulando no passeio.
De joelhos tentou recuperar todos os pedaços que encontrava, muitos ao toque cortavam-lhe os dedos deixando pequenas manchas vermelhas na neve branca.
Os corvos juntaram-se e cada um por si bicava os bocadinhos de vidro que ia encontrando.

Do cimo do telhado olhava para si com uma impavidez impenetrável, estática, fria.
Uma lágrima caiu na sua bochecha.
Olhou para o céu e reparou que estava limpo, sem nuvens, azul, luminoso.
E estava lá, a olhar para si cá em baixo no cimo do telhado.

Essa sim, chorava ..

2 comentários:

Leo Mandoki, Jr. disse...

mil corvos recolheram os mil pedacinhos de vidro da outra, e depois voaram até ao telhado onde ela estava. Aos poucos, um de cada vez, sincronizadamente, juntaram os mil pedacinhos até que a outra estivesse outra vez a existir. Mas já não era a mesma. Estava agora retalhada, remendada, e diferente dela. Foi aí que ela chorou. Mas já não havia nada a fazer.

Micas disse...

tão bom o post como o comentário...