DE UM LADO
Lisboa, algures em Novembro 2006 (jantar com dois amigos, ambos médicos)
- Mas tu és maluca? Afinal já andas há 8 anos nisto. Qual é a tua atracção por esse bando de imprestáveis?
- (…). (...) . (...).
- Aparecem lá no hospital e é tudo deles. Não respeitam as regras, acham que estão acima de tudo e de todos, quando há um deles internado, a frente do hospital torna-se um verdadeiro inferno, vem a família toda, acampam onde podem e só desmobilizam quando o internado tem alta.
- Há uns tempos um colega meu fez uma ecografia a uma miúda de 11 anos e descobriu que ela estava grávida. A miúda parecia ter a estrutura de uma criança de 8 anos. O meu colega, respeitando o sigilo profissional, decidiu não comunicar aos pais a gravidez. À noite, teve que sair pelas traseiras porque a família resolveu fazer-lhe uma ‘espera’.
- Espera?
- Sim, queriam que ele se ‘desbroncasse’. Ele achou que a miúda estava primeiro.
- (…). (...) (...).
Lisboa, Dezembro de 2006 (almoço de família, com irmão e sobrinho)
- Mano, queres ver as fotos que tirei?
- Mostra lá.
(segue-se o visionamento de uma série longa de fotografias)
- Sabes, para mim a solução era muito simples: tiravam-se as crianças a esses bandalhos, entregavam-se para adopção e o resto era tudo gaseado.
- Tia, eu concordo com o pai...
- (…). (...) (...).
Belém, 23.02.2007 (ouvido no café onde vou tomar café, conversavam 2 septuagenárias)
- Eles têm tudo, casa, dinheiro, vivem à conta de todos nós!
- É isso mesmo: grandes carros à porta, havia de ver ó D. G. como é que eles vivem mesmo ali ao pé, onde eu moro.
- Pois é, não trabalham, não fazem nada! Ainda no outro dia, era música até às tantas, aquelas festas que eles fazem e que não têm fim… É música até às tantas e depois não há polícia que se meta ali no meio… É o metes!
- Mas também quem é que os quer para trabalhar? Quem é que quer aquela tropa-fandanga?
DO OUTRO LADO
Vidigueira, Dezembro de 2006 (mulher de 50 anos)
- A Guarda [GNR] manda-nos logo embora, aonde é que havemos de ficar? (...) Não há água para a gente lavar, não há um tanque, não há uma bica para a gente beber água, queremos lavar os moços, não há e depois fecham as bicas.
Vidigueira, Outubro de 2006 (mulher de 70 anos)
- Elas não querem que a gente trabalhe [referindo-se às assistentes sociais]. Ainda na vindima andavam elas de avião à cata de quem andava trabalhando. Em Beja deixam trabalhar, as pessoas de lá deixam elas trabalhar, vão ajudar a encontrar para a gente e tudo. Aqui não gostam (mulher de 70 anos).
Seixal, Dezembro de 2006 (mulher de 30 anos)
- Antes do 25 de Abril nós não podíamos estar 24 horas no mesmo sítio, pela nossa sociedade. Porque nós não somos nem vindos de África nem da Roménia, nós somos portugueses, sempre fomos portugueses, mas não podíamos estar no nosso país e acho que isso teve muito a ver antes do 25 de Abril, nós não podíamos estar 24 horas no mesmo sítio. A minha avó conta-me imensas vezes essas coisas, que não podia entrar nos cafés. E a minha avó sempre foi sedentarizada, sempre morou em casas, sempre foi muito limpinha, sempre nos deu uma grande educação. (…) O meu avô na altura também já estudava, tinha o 4º ano da altura, era uma pessoa que tinha uma vivência na altura como nós temos hoje em dia, só que não podiam estar 24 horas no mesmo sítio. E foi-nos proibido de falar a nossa língua, talvez por isso tenhamos perdido muita coisa. Não podíamos ir à escola, daí vem a comunidade cigana ser analfabeta, se não podíamos viver 24 horas num sítio, também não poderíamos… E depois aí vem, como no dicionário diz: "Ai meus meninos, os ciganos são os pilha-galinhas!" Nós tínhamos que roubar para comer, porque não tínhamos sequer como fazer negócio. Daí vem todo o nosso estereótipo, eu acho que vem daí, o cigano é ladrão!.
Cuba, Dezembro de 2006 (mulher de 25 anos)
- Uma autoridade, ele ia rasgar-me o pano [oleado] e eu pedi-lhe: <Ó senhor guarda não me faça isso, não me rasgue o pano por favor que isso é a minha vida e dos filhos>. Ele vira-se a mim, queria bater-me e eu com um bebé de semanas ao meu colo.
Évora, Janeiro de 2007 (mulher de 60 anos)
- A gente não sabe porque é que se pena tanto...
(continua – de um lado e de outro)
*título de um álbum de Joni Mitchell