13 setembro 2008

Só por hoje

Continua o relato da A. na série The Dirty Boulevard.

Esta época coincidiu com um momento em que estava desempregada. Andava tão desesperada, que já estava por tudo. Fazia o que quer que fosse para me tentar salvar. Pelo menos assim o pensava durante uma boa parte do dia. A outra já se sabe, a não-vontade era maior que eu.

Um dia ganhei coragem e resolvi ligar para o número que encontrei na lista telefónica e que estava atribuído aos NA. Atendeu-me uma máquina e deixei recado. Fui contactada no próprio dia, à noite, por uma voz feminina e simpática. Marcámos encontro para o dia seguinte.

À hora combinada lá estava eu e lá estava ela. Gostei dela, assim, à primeira vista. A medo, titubeando, expliquei-lhe o meu percurso, contei-lhe a minha história e o meu desespero. Ela sorria, sorria sempre. Contou-me, então, a sua história. Muito mais nova do que eu à data deste relato, tinha passado por um ‘fundo de poço’ que eu não pensei que pudesse existir. E agora ali estava, à minha frente, segura, generosa, recuperada há já tantos anos. E disposta a ajudar pessoas na mesma situação que a sua, outrora, que a minha, agora. Por ela e pela sua manifesta generosidade enfrentei uma sala cheia de gente sentada à volta de uma mesa. Era uma sala cedida por uma igreja, onde uma nuvem espessa de fumo pairava sobre as cabeças dos presentes.

Sentei-me. Olhei em volta, vi um painel com a oração da serenidade e outro com os 12 passos. Não tive tempo de perceber ou de olhar sequer para quem me rodeava, a sessão começou logo. Naquele dia não havia tema, pelo que os participantes eram livres de partilhar o que quisessem. À cabeceira da mesa, um veterano NA conduzia a sessão, lia as regras e passava folhas de papel plastificadas, apelando à plateia que lesse este ou aquele parágrafo. A mim calhou-me ler qualquer coisa que não me lembro e a voz saiu-me trémula, embargada, pudera, 20 pares de olhos postos em mim. Sabiam que era a minha primeira vez ali.

Depois, começaram as apresentações. Abriu o moderador-veterano NA, “Olá o meu nome é F. e sou toxicodependente em recuperação há 20 anos”. Responde a plateia: “Olá F.”. Chegou a minha vez e lá balbuciei o mantra. Tive dúvidas na palavra recuperação, estava tão angustiada que sabia que mal pusesse o pé fora daquela sala, iria consumir.

De acordo com as regras, ninguém era obrigado a partilhar se não sentisse vontade de o fazer, e se alguém novo no grupo - o meu caso - o quisesse fazer, teria que esperar e fazê-lo no fim. Mantive-me calada. Não tinha nada para dizer, mas ouvi com muita atenção o que me disseram:

O executivo, pai de família, consumidor compulsivo e arrependido, a loura de cigarro pendurado nos lábios a relatar uma orgia de sexo e cocaína e a rematar no fim ‘e sabem que mais? Gostei’, o mecânico de automóveis obeso que desatou num pranto de lágrimas e arrependimento, a jovem da margem sul tatuada e a transbordar um optimismo de plástico, dois tipos com ar carcomido e calados, braços cruzados, fumando cigarro atrás de cigarro, com a cabeça em mais uma dose de cavalo e muito pouco na sessão, um tipo adormecido de um sono opiáceo no fim da mesa.

A sessão terminou e culmina com um abraço entre os participantes. Calha-me na rifa o mecânico obeso que quase que me esmaga contra o seu peito e me encharca com o seu suor e lágrimas. Saio de lá de dentro, num misto de repulsa e confusão.

Pela minha recém-amiga frequentei mais sessões e fui variando os locais, regra geral, salas em igrejas. No entanto, nunca consegui aderir à filosofia NA e acreditar naquela proto-religião, feita de porta-chaves a assinalar os dias-meses-anos de recuperação, e de mantras e de confissões duvidosas. Não considero que este passo tenha sido decisivo na minha recuperação. Mas foi um dos muitos passos que dei, numa longa caminhada feita de avanços e de retrocessos. (...) Mas este não é um juízo de valor, não tenho nada contra os NA, simplesmente não funcionou comigo.

Valeu, contudo, o facto de ter conhecido a minha amiga. Há uns anos, telefonei-lhe. Já não se lembrava de mim, e foram precisos uns bons 10 minutos de conversa até me conseguir situar. Contei-lhe que me tinha safado e que me tinha lembrado dela, que lhe queria agradecer o que tinha feito por mim. Quase que a posso imaginar do outro lado da linha. A sorrir.

4 comentários:

Isabela Figueiredo disse...

Olha, minha querida, isto é uma coisa da tua autoria, não é? Gostei muito, muito.

8 e coisa 9 e tal disse...

olha isabela, a autoria importa o quê?

gostei muito que tivesses gostado muito.

e que sirva para alguma coisa, assim é a vontade destas 'vozes'.

um abraço grande

:)

d. inês sequiosa disse...

Autorias à parte, é bom ver que se conseguem passar as avenidas sujas. E, já agora, que seja a sorrir.

sete e pico disse...

passar as avenidas sujas não perder o norte, nem o sul. Mais uma bonita posta oito