Tempos estranhos estes em que me vejo rodeada por amigos alternativos. Sinto-me pré-histórica: como carne, tomo medicamentos, não faço acupunctura, vou a médicos convencionais, tive o meu filho no hospital, não colo grãos de mostarda na orelha para equilibrar as energias. Pior ainda: sou uma pré-histórica chata, faço perguntas sobre as certezas que têm, sorrio do modo automático com que demonizam tudo o que vem da medicina moderna.
Nos últimos tempos, as conversas vão quase sempre parar ao mesmo tema, última moda que tomou conta de grande parte das pessoas que eu conheço: ter os filhos em casa. Conheço várias pessoas, mais ou menos próximas, que compraram a cassete do rosário de motivos para esta escolha: a humanização do parto, a recusa da medicalização de um processo natural, o regresso à natureza. Compreendo as queixas contra a forma como as mulheres são tratadas nas maternidades, concordo que somos muitas vezes tratadas como corpos anónimos desligados das pessoas que somos, sei que é urgente mudar muito do que actualmente existe em Portugal. Mas sei também que o parto não é um acontecimento simples, sei que podem surgir complicações, sei que a medicina não é o monstro que alguns pintam, sei que Portugal tem das mais baixas taxas de morte materna e peri-natal do sul da Europa.
O que me choca é que, para alguns destes meus amigos, os avanços e conquistas da ciência são absolutamente proibidos: a indução do parto é um erro, a epidural é uma armadilha inaceitável. Os mais audazes prescindem mesmo da vigilância durante a gravidez e limitam-se a encontros com doulas e parteiras. Repetem que se deve seguir o que o corpo diz e o que a natureza manda. Esquecem que a natureza é imperfeita e que a medicina pode corrigir algumas imperfeições que surjam no caminho.
Tudo isto remete para a liberdade individual de fazermos as escolhas que muito bem entendemos. Mais do que os caminhos que se escolhem, o que me impressiona é a forma automática e acrítica como estas escolhas podem ser feitas. Lembro-me de uns amigos que escolheram ter o filho em casa aos quarenta anos, recusaram a vigilância durante a gravidez, defenderam contra tudo e contra todos o regresso à natureza. Ignoraram os riscos do parto, deixaram passar os prazos, esconderam os sintomas de um problema que apareceu. E acabaram num hospital, a fazer uma cesariana que salvou as duas vidas que poderiam ter desaparecido se tivessem ficado em casa.
Há dias, contaram-me a história heróica de uns amigos de amigos que vivem numa quinta com os seus dois filhos. Nascidos em casa, os filhos não foram vacinados. A justificação é de antologia: as crianças vivem saudáveis e felizes no meio da natureza; as doenças perigosas só existem na cidade. Se, por um acaso improvável, as crianças adoecem, estes heróis modernos encharcam-nos em chás e mezinhas. Recusam-se a usar antibióticos, por uma razão simples: «anti» significa contra, «bio» significa vida. Ajudados pela etimologia, afirmam que o antibiótico mata. Resta saber quem mata, mas esse é um pormenor irrelevante.
Pré-histórica e chata, dão-me vontade de rir estes heróis dos tempos modernos, trespassados por agulhas e agarrados a grânulos homeopáticos, que combatem cegamente o que se recusam a conhecer. E agora, pelo sim pelo não, bebo uma tisana, agarro-me ao cristal com propriedades terapêuticas e espero que a fúria dos deuses não se abata sobre mim.
Nos últimos tempos, as conversas vão quase sempre parar ao mesmo tema, última moda que tomou conta de grande parte das pessoas que eu conheço: ter os filhos em casa. Conheço várias pessoas, mais ou menos próximas, que compraram a cassete do rosário de motivos para esta escolha: a humanização do parto, a recusa da medicalização de um processo natural, o regresso à natureza. Compreendo as queixas contra a forma como as mulheres são tratadas nas maternidades, concordo que somos muitas vezes tratadas como corpos anónimos desligados das pessoas que somos, sei que é urgente mudar muito do que actualmente existe em Portugal. Mas sei também que o parto não é um acontecimento simples, sei que podem surgir complicações, sei que a medicina não é o monstro que alguns pintam, sei que Portugal tem das mais baixas taxas de morte materna e peri-natal do sul da Europa.
O que me choca é que, para alguns destes meus amigos, os avanços e conquistas da ciência são absolutamente proibidos: a indução do parto é um erro, a epidural é uma armadilha inaceitável. Os mais audazes prescindem mesmo da vigilância durante a gravidez e limitam-se a encontros com doulas e parteiras. Repetem que se deve seguir o que o corpo diz e o que a natureza manda. Esquecem que a natureza é imperfeita e que a medicina pode corrigir algumas imperfeições que surjam no caminho.
Tudo isto remete para a liberdade individual de fazermos as escolhas que muito bem entendemos. Mais do que os caminhos que se escolhem, o que me impressiona é a forma automática e acrítica como estas escolhas podem ser feitas. Lembro-me de uns amigos que escolheram ter o filho em casa aos quarenta anos, recusaram a vigilância durante a gravidez, defenderam contra tudo e contra todos o regresso à natureza. Ignoraram os riscos do parto, deixaram passar os prazos, esconderam os sintomas de um problema que apareceu. E acabaram num hospital, a fazer uma cesariana que salvou as duas vidas que poderiam ter desaparecido se tivessem ficado em casa.
Há dias, contaram-me a história heróica de uns amigos de amigos que vivem numa quinta com os seus dois filhos. Nascidos em casa, os filhos não foram vacinados. A justificação é de antologia: as crianças vivem saudáveis e felizes no meio da natureza; as doenças perigosas só existem na cidade. Se, por um acaso improvável, as crianças adoecem, estes heróis modernos encharcam-nos em chás e mezinhas. Recusam-se a usar antibióticos, por uma razão simples: «anti» significa contra, «bio» significa vida. Ajudados pela etimologia, afirmam que o antibiótico mata. Resta saber quem mata, mas esse é um pormenor irrelevante.
Pré-histórica e chata, dão-me vontade de rir estes heróis dos tempos modernos, trespassados por agulhas e agarrados a grânulos homeopáticos, que combatem cegamente o que se recusam a conhecer. E agora, pelo sim pelo não, bebo uma tisana, agarro-me ao cristal com propriedades terapêuticas e espero que a fúria dos deuses não se abata sobre mim.
5 comentários:
...o mito do bom selvagem. A natureza é boa, a sociedade, o progresso corrompem... são anti-naturais. Isso é um bocado a negação da nossa natureza. Nós somos naturais, não temos de "regressar à natureza". Estamos e sempre estivémos "na natureza", não temos de regressar a ela.... Se inventámos os medicamentos então eles também são naturais, por definição, a não ser que se considere que somos uma espécie de seres transformadores da naturalidade, conspurcadores da naturalidade Universal, "born to kill...the nature" ... É como se a criação humana pudesse ser vista como intrinsecamente maléfica, anti-natural. Não é. Somos só pó de estrelas, sejamos humildes. E se o fantástico condensado de pó de estrelas que é o nosso cérebro nos conduzir à auto-destruição, o Universo vai continuar a expandir-se... indiferente a tudo, o grande sacana...
querida múltipla,
correcção no título, se me permites:
a ciência não é um demónio. a estupidez sim.
Amiga oito, não negue à partida uma ciência que desconhece, como diria a outra, às vezes o que é preciso é um bocadinho de bom senso e isso faria bem aos dois lados, os alternativos e os pró-ciência radicais.
Acostumámo-nos durante muito tempo a endeusar a ciência e em particular a medicina e esta foi cada vez mais desenvolvendo-se na sua técnica e afastando-se do seu principal objectivo: a cura da pessoa. Traduzimos a medicina em sistemas de saúde deficientes que separam a pessoa em partes; a medicina dedica-se muitas vezes a tratar os sintomas e esquece o individuo no seu todo, aqueles que a praticam olham o corpo doente e não o sujeito que está por detrás dele, e saõ poucas as vezes que o olham nos 10 a 15 minutos que têm para as consultas. Por isso cada vez mais agora se sente a necessidade de fazer cursos para "humanizar" a atenção em saúde e olha que bem falta fazem.
O "regresso à natureza" não é de todo descabido, pelo contrário, faz-nos parar e pensar em formas alternativas de poder encarar a doença e a saúde, em formas talvez menos nocivas do que passarmos a vida a encharcarnos de antibióticos e compridos para todos os tipos de dores e de problemas, é o comprimido para o apetite, para a falta dele, para a insónia, para o pânico, para a depressão, para a dor de cabeça de estomâgo ou para as dores de periodo. Esquecemo-nos de pôr em causa a própria ciência, queremos soluções rápidas e eficazes que nos façam esquecer a fragilidade deste nosso corpo.
Se de um lado temos aqueles que rejeitam, estupidamente concordo, o antibiótico por ser contra a vida, por outro temos os hipocondriacos ou os fármaco-dependentes.
Quanto à questão do parto, cada vez mais compreendo quem o queira fazer longe da agressão horrivel a que sujeitam as mulheres nos hospitais. Num parto medicamente assistido a mulher tem de estar de pernas abertas como se estivesse na ginecologista não podendo andar livremente e parir como bem entender o seu corpo, o que é uma invenção relativemente recente e que dá jeito ao médico, não à mulher. Por vezes, está-se deitada numa maca sozinha, cheia de dores e ouve-se uma cabr.. de uma enfermeira que nos diz: quando foi para fazê-lo já não gritava, não era?? ou um médico/a que passa com os seus assistentes e mostra na nossa vagina exposta como são as dilatações, estão a ver agora tem 5 dedos.. Quanto à epidural é muito bom não ter dores, mas é horrivel não poder fazer as contracções da forma como o o corpo está apto para as fazer e ter que imaginar o que fazer sem o estar a sentir realmente. As cesarianas, moda cada vez mais frequente, quando não justificadas, dãojeito não só a muitas mulheres que o pedem mas também ao sistema de saúde que poupa dinheiro com o parto natural, e foi tanto o aumento do número de cesarianas que a OMS já deu directivas no sentido de os hopsitais e clinicas terem mais cuidados e as evitarem.
O parto em casa pelo menos permite que tu possas ter o teu filho da maneira que te apetecer, com música,sem música, parindo de pé ou de gatas, enfim... É bom sempre e quando não haja complicações e aí voltamos de novo ao bom senso. A natureza nem sempre é perfeita concordo, e para isso temos a ajuda da medicina e ainda bem, mas também e talvez a maioria das vezes, não é imperfeita e aí para quê medicalizar uma situação que pode ser vivida de uma forma muito mais agradável?
Por isso, se por um lado também desconfio dos alternativos radicais, por outro também não acho muito inteligente ter uma fé cega na medicina.
Resta-nos o bom senso.
Querida sete e picos, concordo com alguns dos teus argumentos e discordo de outros. Humanizar os serviços de saúde é urgente, tal como é urgente fiscalizar o trabalho de médicos que prescrevem medicamentos e exames desnecessários, tal como é urgente educar apara a saúde e para a adopção de comportamentos que previnam a doença.
Claro que há pessoas que "tomam comprimidos para tudo", mas isso não é um exclusivo daqueles que confiam na medicina convencional. Há também quem se encharque em granulos para a vesícula, gotas para a indecisão e xaropes fortificantes - homeopáticos, naturais ou sucedâneos. Há quem se baseie numa estranha distinção natural/químico, como se fossem termos antagónicos - quanta química há em elementos que não são manipulados pela tecnologia humana? Não seremos também nós um composto químico com pernas e braços?
Do que leio, parece-me que quem precisa fazer urgentemente um workshop de regresso à natureza e de respeito pela pessoa são os médicos do SNS.
Se bem que a vontade e disposição tenham um papel fundamental na cura ou atraso do desenvolvimento da doença (chamem-lhe energia, aura, sorte, o je ne sais quois), não me vou atirar para os braços do primeiro curandeiro que me aparecer à frente para tratar um estomago perfurado ou uma fractura exposta.
Há que ter bom senso. Se bem que ter um filho a ouvir uma bela música e na companhia dos seus possa ser atraente, não nos esqueçamos que um parto 100% sem complicações, e que portanto possa seguir esse padrão, não é a norma. Além do mais, as dores das contracções são de tal forma violentas que há que respeitar o direito da mãe ao não sofrimento, já que a criança sofre o que a mãe sofrer.
Dores de parto sim, ma non troppo.
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