A vida dentro das quatro paredes da nossa casa implica uma série de actividades: comprar comida, guardá-la, cozinhá-la, guardar o que sobra no frigorifico, lavar a louça, arrumar a cozinha, limpar o pó e passar o pronto, limpar o chão e os banhos, paredes inclusive, aspirar, fazer as camas, separar roupa para lavar, lavá-la, estendê-la, dobrá-la, passá-la, guardá-la, etc, etc. E o bricolage: arranjar a torneira que pinga, pendurar o quadro, arranjar a porta do armário que está desajustada, montar estantes, etc. Algumas destas actividades são mais frequentes, digamos diárias ou pelo menos semanais, outras, como é o caso de bricolage, são mais esporádicas, realizam-se de quando em quando. Tradicionalmente, na nossa cultura ocidental, as primeiras eram realizadas essencialmente por mulheres, as segundas desempenhadas em geral pelos homens.
Mas como nem sempre do tradicional e do geral se fazem as nossas histórias, no meu caso, habituei-me a gostar do bricolage. Em miúda, sentia um gozo especial em pregar pregos, pôr parafusos, fazer um candeeiro, tentar ver como funcionavam as coisas e o que poderia fazer para arranjá-las, e como nem o meu pai nem o meu irmão tinham jeito ou gostavam disto, eu tinha por vezes oportunidades para praticar este meu gozo. Quando saí de casa dos meus pais, relativamente cedo, e fui viver com 2 amigas, elegemos o martelo como o melhor amigo da mulher; era incrível a quantidade de vezes que o usávamos, fosse para arranjar uma janela ou abrir um lata de pêssegos em calda de antes do tempo da abertura fácil. Há muito tempo que adoro manuais de instruções e sou fã do IKEA, sinto-me inteligente a montar as coisas deles, apesar de saber que estão feitas para serem fáceis. É verdade que para coisas mais complicadas há sempre a um amigo homem disposto a ajudar, mas, sem ser perfeccionista nem experta, aprendi a não ter receio ao bricolage doméstico.
Mas há pouco tempo, a propósito de uma série de mudanças de casa, minhas e de amigas, comecei a perceber que estava enferrujada, que já não pegava no martelo ou na chave de parafusos com a mesma segurança, que não tomava a iniciativa de montar uma estante do IKEA ou que guardava rapidamente os manuais de instruções sem os ler atentamente. Há já alguns anos que partilho a casa e a vida com um homem, um homem habituado a fazer estas actividades desde pequeno e ainda para mais com muito jeito para elas. Comecei a perceber que me tinha vindo a acomodar, fui deixando que fosse ele a fazer o bricolage da casa. Ao principio ia ajudando mas depois acabei por ir deixando-o sozinho a montar e a arranjar enquanto eu ia tratando de outras coisas (por exemplo, a cozinha, o arrumar, o organizar), e quando alguma coisa se estragava, imediatamente o chamava sem sequer tentar ser eu a arranjar.
Resolvi então retomar o gosto no maravilhoso mundo do bricolage, e, eis senão quando, encontro um enorme obstáculo: a pergunta feita a cada meio minuto: Queres ajuda?, ou, mal se agarra no parafuso, Queres saber um truque para esses parafusos? Junto a isto, ouvir frequentes suspiros desesperados, Aiiiiiii meu deus!!!!, ou Espera, espera, espera, não faças isso (com um tom aflitíssimo). Claro que uma pessoa fica nervosa e baralha-se com as instruções e já mete as prateleiras da Billy ao contrário com os parafusos a verem-se, deixa cair a chave de parafusos repetidas vezes e, apesar de se esforçar e arranjar uma solução criativa de embrulhar o martelo no cachecol para não partir a madeira, é mesmo assim interrompida diz que por causa das rachas que já se começavam a ver (juro que não vi nada que se pudesse assemelhar a rachas).
Hesitei entre o ir montar a estante para a casa do vizinho ou aguentar-me e apanhar a chave de parafusos tantas vezes quantas as que ela caiu. E fiz memórias das quantas e quantas vezes que fui, sou, uma chata e, por exemplo, disse ao meu companheiro quando ele tenta cozinhar, Isso não é assim; vais pôr essas ervas, arghhh, isso não combina nada bem; deixa estar que eu faço o jantar que sou mais rápida que tu.
Apesar de todos os conhecimentos teóricos, de todas as mudanças sociais em relação à igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, apesar de todas as convicções, na construção da minha realidade, pessoal, intima e partilhada, encontro-me a cada passo com as minhas incoerências da vida quotidiana e não tenho um manual de instruções que me valha. Só me resta agarrar-me ao martelo!* e seguir para bingo!
*Pede-se a alguma das minhas queridas múltiplas o favor de explicar a anedota.