05 novembro 2006

Disco riscado

Cresci à custa de tanto falar contigo e tu comigo.
Juntas descobríamos o mundo, adivinhávamos o sentido do universo, deitávamo-nos na relva e olhávamos para as estrelas que nos pareciam sorrir lá em cima, só para nós. Adormecíamos ao som de uma lengalenga secreta que tínhamos inventado. E que resultava. Jurávamos que nunca a revelaríamos a nínguem (eu nunca a revelei).
Tu sabias tocar guitarra e eu olhava-te fascinada a dedilhar aquele instrumento que aprendeste sem que ninguém to tivesse ensinado. Eu martelava-te sonatas mal estudadas no piano que tu aplaudias, sempre. Cantávamos a duas vozes, que acabavam por ser só uma. Tu eras eu e eu tu, o espelho onde as nossas almas se reflectiam limpidamente. Éramos tão diferentes, éramos tão iguais.
A mania que tinhas de desmontar máquinas. E eu, de tua assistente, chateada da vida, enquanto tu teimosamente achavas que resolvias sózinha problemas mecânicos e eléctricos. E resolvias mesmo (menos o motor do carro que desmontaste).
As tardes passadas no Aleixo, tu empenhada em mecância quântica, eu em qualquer teoria social maçadora. Tu a reduzires as minhas questões existenciais a uma simples equação, eu a mostrar-te o avesso das ideias, das palavras. O mar a bater, ora bravo, ora tranquilo. Como nós.
A ceia fundamental antes de ir dormir, uma marca de chocolate só tua, outra só minha, era o único ponto em que divergíamos. Enquanto a manteiga escorria por entre torradas e dedos, fazíamos o balanço do dia e virávamos mais uma página das nossas vidas. Até à próxima ceia, cacau e torradas, sempre o mesmo ritual.
Quando é que desces a montanha, largas os mosquitos e a humidade peganhenta?
Tenho saudades tuas.

10 comentários:

sem-se-ver disse...

mas que bonito...

Anónimo disse...

Tao querida! Estou a ver que foi uma infância muito doce! Cheia de cacau e chocolates! =D

Mas é bom termos uma infância do qual nós humanos, gostamos de nos recordar. Faz nos sentir pequenos quando ja não o somos e também faz-nos querer voltar àqueles remotos tempos..

Beijinhos à minha Tia Mafalda, e que continues a por posts bonitos como este!

"Keep up the good work!!!"

Maria, a tua sobrinha!

8 e coisa 9 e tal disse...

Maria querida sobrinha,

Obrigada! Por ti, quero lá saber que os outros saibam do meu nome que - até hoje - passava incognitamente, sob o signo das múltiplas.
vfuuuuu, vfuuuuuu, vfuuuuu... (só tu sabes o q isto quer dizer).

Sem-se-ver e pirata vermelho,
:)))

Anónimo disse...

Tenho um poema para ti:

http://manyfaces.blogs.sapo.pt/3714.html


Fica bem,

ManyFaces

8 e coisa 9 e tal disse...

manyfaces, gostei imenso do poema.
imenso como o mar.
obrigada!

Anónimo disse...

...e ainda outro de um rapaz da minha geração:

http://www.jpsimoes.com/micamo.html


ManyFaces

8 e coisa 9 e tal disse...

manyfaces, é caso p dizer: estragas-me com poemas.

JP Simões é um grande letrista e compositor. E um excelente amigo!

(e o novo álbum dele para ouvir em noites de 'buarque à vela')

Anónimo disse...

Fui ao Coliseu no Sábado passado. É preciso ouvir os Clássicos... E aprender com eles.


ManyFaces

8 e coisa 9 e tal disse...

"romeiro romeiro quem és tu"? (pergunta de um 'clássico')

q sorte... eu não fui.

mas já fiz 600km por causa de uma praia chamada 'itapoã'.

Anónimo disse...

Hoje? Talvez uma memória:

http://manyfaces.blogs.sapo.pt/6945.html


ManyFaces