20 dezembro 2007

corpo têxtil

Vivo ao lado do tempo.
Cá dentro no meu covil enfeitado é sempre demasiado tarde para o que eu quero e demasiado cedo para o que os outros querem de mim. Ou ao contrário.
Nasci com cem anos e vou tendo cada vez menos. Por este andar vou chegar ao zero e depois não sei como é que vai ser.
Os meus demónios têm cara de relógio e corpos de sangue frio. Primeiro rastejam no soalho e depois amarinham pelas minhas pernas e cravam-se nos meus joelhos dez vezes por cada minuto que já passou.
Assim, trago o tempo à mostra e não há roupa que o tape.
A sua cadência escorre pelos buracos têxteis. Trago o tempo à vista nos olhos e nos dentes.
Ganho créditos para a máquina mas gasto-os logo. Rapidamente é tarde de mais.
Vejo o tempo nos meus amigos e nos filhos deles.
Vejo o tempo nos meus pais e avós, nos dos outros e no autocarro.
Não é bom de se ver. A mim dói-me.
Vejo todos os meus minutos nas mãos e na pele deles. Como transparências sobrepostas, eles têm as minhas horas coladas às deles com amor. E levam-nos daqui para ali quando viajam e quando já não nos vemos.
Como polvos depois da pesca, transportamos nos baldes o tempo uns dos outros às costas.
Em mútuo festejo e invasão sugamos os dias uns aos outros. Por amor e por falta.

4 comentários:

dizia ela baixinho disse...

grande texto.
um abraço querida oito.

JPN disse...

texto muito sensível e rasgado. gosto muito destes.

:)

-pirata-vermelho- disse...

(Nunca me calarei! )
Se todos os textos aqui publicados tivessem esta dimensão...
não podendo ser que seja de referência, de nivelamento ou para reflexão séria acerca da implicação e da responsabilidade de publicar.

O melhor que posso dizer, estimada 'múltipla', já que não me encontro com latitude para elogiar, é que tomara eu escrever assim.

dizia ela baixinho disse...

venho aqui ao blogue e dou por mim à procura deste texto p o ler e ler mais uma e outra vez. q palavras bem achadas.

e estou como o pirata - tomara eu escrever assim.

um beijo