Passeava com a minha filha pelo Parque das Nações, aproveitando as maravilhas do verão e do ar fresco da manhã, quando nos cruzamos com um bebé rapaz e uma senhora que o acompanhava. Os dois estiveram a olhar um para o outro, a sorrir e a querer brincar. A senhora disse: viste, estás cheio de sorte, já tens aqui uma menina doida por ti, como será quando fores grande... Não me espantei, desde que a minha filha começou a sorrir com o seu simpático e convidativo sorriso que ouvi: ai, ela é muito sedutora, muito “coquete”...
Depois do passeio, tive de ir um grande hipermercado, daqueles que eu odeio mas que são imprescindíveis para conseguir uma mesa de jardim a menos de 15 Euros, e ao passar na secção das crianças, encontro um espaço gigantesco onde abundava o cor de rosa, com um gigantesco letreiro que gritava: MENINAS. Atravesso o mundo de incontáveis Barbies e suas derivadas, queridos animaizinhos, cozinhas que fariam inveja a qualquer uma do IKEA, vestidos, acessórios e adereços para as bonecas de todas as formas e feitios, com uma desconfortável sensação de pink overdosis pegada ao corpo.
Cheguei a casa. Entre o Noddy e o Ruca, os anúncios do canal Panda reproduzem sem temor nem pudor os mesmos esquemas de sempre: os meninos brincam com armas, guerreiros, carros e construções, as meninas com coisas delicadas que reproduzem todo o imaginário feminino ligado ao doméstico, à sensibilidade, à beleza, ao ser belas e agradar aos outros. Carrego no mute e no intervalo entretemo-nos a brincar a ser peixes e raias, como as do Oceanário.
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Por fim, um pouco de silêncio... A lua lá em cima, generosa no brilho... Fumo um cigarro e repasso o dia:
Teimamos em “dizer” aos meninos que a guerra é boa e que eles têm de aprender a ser guerreiros; que há sempre um inimigo, e que há o defender o bem que somos sempre nós. (Mais tarde, quando estão mais crescidos, ensinamos-lhes que o melhor ainda é a guerra preventiva, ataca primeiro e negoceia depois, muuuuuiittto depois...). Às meninas, continuamos a dizer que têm que ser delicadas, amorosas, cuidar das bonecas e das lides para mais tarde o continuarem a fazer nas suas casas, que serão lindas e arranjadas, espaço de amor e de família, objectivo imprescindível para uma lady.
Continuamos a normalizar a guerra como um meio de relação, já seja nos mundos imaginários ou nos reais, como vimos agora o governo de Israel (e separo propositadamente o governo da sua população) a utilizar crianças para escrever mensagens nos mísseis que mataram muitas crianças do outro lado.
Criamos e ajudamos as nossas crianças a crescer, e insistimos em torcer o pepino às nossas meninas e meninos em formas que os asfixiam, pois nem o trabalho doméstico acumulado numa só pessoa nem a guerra nos servem para ser felizes, entre muitas outras coisas claro...
O cigarro arde sozinho no cinzeiro.
Patati, patata, rebéubéubéu pardais ao ninho, coisas do privado que não são pr’áqui chamadas...
Olho para cima. Continua lá, aquele brilho e também tudo aquilo que (não) se vê na face oculta da lua...
O que nos vale é que o mundo dá muitas voltas e ao contrário do que dizem, não fica sempre na mesma. Deixo a cozinha arrumada, apago a luz e deito-me à espera do sono.
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