28 dezembro 2007

O que eu queria

O que eu queria mesmo é que o pai não estivesse doente, que não estivesse no hospital, que não tivesse tubos a entrar e sair por vários sítios, que se levantasse e se viesse embora comigo. Podemos ir ao circo, prometo que não vou ter medo dos palhaços, ou ao cinema, já não o obrigo a ver desenhos animados, ou ouvir cassetes no carro, não vou chamar piroso ao Roberto Carlos.

Estou zangada consigo pai, não quero que me faça isto. Não quero que esteja doente. Está a fingir não está, pai? Como quando eu era pequena e brincávamos no chão da sala, o pai fazia de conta que estava morto e eu fazia-lhe cócegas desajeitadas, o pai continuava de olhos vítreos até que de repente se levantava com um grito que me assustava e divertia, para recomeçarmos de novo.
Levante-se e dê um grito pai, eu assusto-me mas depois desato-me a rir, e saímos dali de mãos dadas e vamos comer um gelado ao Santini ou ver o mar sentados no muro de pedra ao lado dos baloiços, onde passou horas a empurrar-me "mais, mais" pedia-lhe sempre, até me ensinar a fazê-lo sozinha, com os pés bem fincados no chão atrás para o balanço inicial, e depois a aerodinâmica das pernas, a ilusão de que um dia faria a volta de 360º por cima da barra, basta que dê balanço suficiente.
Estou triste pai, estou farta disto, não quero mais, chega. A doença já me levou a mãe, o avô querido, a avó das torradas na cama, o avô que me levava a dar pão aos patos no parque eduardo VII, a tia que me tentou baptizar, o tio que se ria como o Egas da rua sésamo, a tia mais santa que já conheci. Foram tantos tantos tantos que a doença já me levou pai. Não quero mais doenças, não quero mais doentes, não quero mais hospitais nem médicos nem enfermeiras nem auxiliares nem remédios nem soros nem "comeu bem o almoço" nem "passou bem a noite" nem "hoje está bem disposto" e muito menos "ele hoje está mal disposto".

Pare lá com isso pai, já chega. Passei a manhã toda a ler o jornal ao seu lado, não se passa nada estamos só a ler os jornais juntos, num quarto de hospital mas como se fosse numa sala de estar. O meu teatro, porra que já mereço um óscar. Estou bem, o pai está bem, estamos aqui mas podíamos estar na sala de estar, no fundo é a mesma coisa, até levo o computador para trabalhar e tudo, estamos ali os dois, só os dois, depois vêm as manas e estamos todos juntos, é bom.

Mas não é nada bom pai. Se não fica bem depressa não tenho quem tome conta de mim.

3 comentários:

Anónimo disse...

[comovido. tanto. por ser pai. por ser filho. porque estou também farto que que as pessoas se vão embora definitivamente]

sete e pico disse...

belo texto querida multipla.

dizia ela baixinho disse...

é belo. é triste.
assim é a vida.
e dou-te o abraço q se solta agora.