Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio
e as pedras das esquinas em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias:
os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade
14 comentários:
este poema dá cabo de mim.
um dos meus poemas preferidos, desde tenra idade... nunca eu poderia imaginar que se iria, repetidamente, tornar tristemente a história da minha vida.
dói
«dizia ela baixinho disse...
este poema dá cabo de mim.»
idem idem aspas aspas
chorei ao lê-lo. axo q me vou «apropriar» e pô-lo tb no meu blog.
"Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
"
Revisão em alta de um poema triste:
hoje são apenas os meus olhos.
e os meus olhos são as minhas mãos e as minhas mãos são quase tudo. a linguagem, nem mesmo quando gastávamos os fundilhos das palavras em longas excitações sobre a doença do amor, chegou aqui a este lugar onde os olhos são como mãos.
não sei porquê, hoje acordei com vontade de dizer...
dói? dá cabo?
olhem... hirudoid(R) e chá de tília
Cabeça erguida, menina, que para trás mija a burra.
Cheerio,
DP
P.S.: mas, lá está, não resisto a copiá-lo :)
"dentro de ti não há nada que me peça àgua". esta frase não me sai da cabeça
joão belo escreveste uma coisa bonita (passando o pleonasmo) :)
tá-me a parecer que o anónimo das 12.45 hoje acordou com os pés d fora..
uma pessoa quando não sabe onde por as mãos põe-nas nos bolsos. e assim fica mais confortável. e mais segura.
mas... e quando se acorda com os pés de fora? há algum lugar para os guardar?
não há bolsos para os pés. e não, não são os sapatos, esse lugar. não tem nada a ver com isso.
é toda uma outra coisa. o anónimo - se calhar - precisa de bolsos para os pés.
Gosto muito deste poema.
Desde a primeira vez que alguém mo leu (a professora de português do 11ºano)que me vêm à memória, de tempos em tempos, versos que firmei instantaneamente em mim.
Gosto muito. E dói realmente a verdade que conta.
Eu a primeira vez que o ouvi foi numa apresentação de poemas da escola secundária onde eu dava aulas, dito por um aluno do 11ª que estava a sofrer um desgosto de amor. O raça do miudo fazia chorar as pedras quando o dizia.
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