10 outubro 2007

Madalena

Madalena levantou-se, tomou banho, vestiu-se, arranjou os filhos para irem para a escola, deu um beijo ao marido, pôs a mala a tiracolo e apanhou o autocarro para o seu trabalho de atenção ao utente no serviço de urgências psiquiátricas do Hospital. Marcava consultas, atendia telefonemas, chamava os utentes à hora da consulta, sempre com a mesma voz, a mesma certeza de quem sabe cumprir o seu papel de representante de um sistema de saúde com regras claras, eficiente. Mas naquele dia, aquele homem dos olhos grandes e doces não a deixava continuar o seu trabalho, mostrar a sua eficiência, insistia que queria ser atendido, que precisava de ajuda, de atenção. Para ela, ele era um actor desiquilibrado, até já o tinha visto na televisão, mas não tinha consulta marcada e isso era quanto bastava para que Madalena não saísse da sua rotina. Mesmo assim, Madalena, já nervosa, consultou o seu colega, a médica que por ali passava, e o senhor António dos cafés. Todos releram as normas do serviço e todos repetiram ao utente dos olhos grandes que esperava ansioso, é a norma, não se pode fazer nada. E nesse momento o utente deixou de esperar, e os seus olhos grandes só viram a luz da rua, esse ar imenso onde tudo seria possível, onde a desesperança e a solidão não o acompanhariam. E correu, correu furiosamente, deu um impulso e voou; desesperada e resolutamente, o homem dos olhos grandes atravessou da sombra para a luz, desfazendo as normas impossíveis para a sua vida tão grande. Nessa tarde, Madalena picou o ponto às 17.17 p.m., apanhou de novo o autocarro, comprou pizza para o jantar e durante sete dias e sete noites esqueceu as palavras. Ao oitavo dia, o seu marido convenceu-a a procurar ajuda e Madalena respondeu num tom impessoal e ausente: sem consulta marcada não é possível. Estas foram as únicas palavras que saíram da sua boca durante muito tempo, até ao dia da inauguração das urgências de psiquiatria no seu antigo sítio de trabalho. Nesse dia, Madalena apanhou o autocarro, recitou poesia a todas as pessoas que encontrou e ao chegar ao hospital inscreveu-se como utente interna. O seu marido e os seus filhos visitam-na todos os sábado à tarde, levam-lhe aviões, asas, papagaios de papel e pássaros de penas, tudo o que possa estar relacionado com voar. Quando algum dia não o fazem, Madalena entra em convulsão profunda e entre esgares, ameaça não contar onde escondeu os 676 contos que poupou em toda a sua vida de atenção aos utentes dos olhos grandes. Não se sabe se por isso ou porque a querem ou talvez pelas duas, nunca faltam os presentes alados nas visitas de sábado à tarde.

5 comentários:

sem-se-ver disse...

(fiquei sem palavras)

Anónimo disse...

Eu também fiquei sem palavras, mas com muitas ideias...

D. Ester disse...

ó manyfaces, não nos deixe em cuidados homem.

Anónimo disse...

:-) ideias para prosas...
Tenho uns assuntos a resolver com a memória de uma pessoa de olhos grandes e doces que um dia também voou.

D. Ester disse...

ah bom, fico mais descansada. Resolver assuntos faz sempre bem, despache-os um a um e vai ver que quando der por isso... puf - está cheio de problemas novinhos em folha para lidar.