14 outubro 2007

Milagres

Não sabia mas fiquei a saber, há quem pense que Deus faz milagres através da televisão. A santa igreja é que não foi na cantiga, e decidiu que uma menina ficar curada de diabetes só porque a sua mãe viu os pastorinhos no pequeno écran não é base para santificar ninguém. Estranhamente dizem que é por não saberem se a diabetes era tipo 1 ou 2, como se não houvesse fichas médicas nos hospitais a atestar o diagnóstico. Dizem não saber se a cura foi completa, mas parece que em qualquer farmácia se pode fazer o teste da glicémia e assim averiguar da integridade e capacidade da insulina. Mas que se lixe. Está tudo a rezar por um novo milagre, um milagre à séria, daqueles que levantam os paraplégicos, acordam os mortos, fazem ver os cegos. Eu cá gostava de ver um ateu a ser vítima de uma coisa dessas, seria prova da infinita bondade do Senhor, e de que não é preciso acreditar para que o espírito santo caia sobre nós. Seria sem dúvida um genial golpe de publicidade e marketing para a Igreja Católica.

Vem-me à memória o pároco que segui no meu período beato; repetia todos os domingos, na sua homília que durava não menos de 50 minutos, que a televisão era o diabo, fonte de inúmeros pecados e incitador de tudo o que era indigno. Estranhamente exortou os seus fieis a contribuirem para a compra de acções da TVI quando esta apareceu, dizendo que se tivessemos dinheiro suficiente poderíamos eventualmente ter uma voz activa na programação. Era ver a fila de crentes a assinar cheques na sacristia, enquanto devolvia o meu dossier dos cânticos do coro dessa semana.

Eu deixei de ir à Igreja, o meu pároco morreu, mas parece que no Vaticano a insatisfação com a televisão ainda dura.

Francamente, estou-me a marimbar para os pastorinhos e não acredito que tenham visto Maria. No entanto, não posso deixar de ter uma réstia de inveja para com os que acreditam em Deus e numa força maior, que nos pode curar, salvar, redimir e acompanhar. Seria tudo tão mais fácil. E no entanto é-me intrinsecamente impossível.

Além do mais, não consigo entender porque raio a mãe de Deus desceria à terra para falar com 3 putos, subnutridos e aborrecidos nos montes, sobre os perigos dos infiéis europeus e do atentado ao papa, se só se podia dar a conhecer ao mundo os factos depois de eles terem acontecido. Diziam-me sempre que os desígnios do Senhor são insondáveis, e fez assim porque sim. De cada vez que não havia resposta para alguma coisa, e descobri serem várias, a resposta que me era dada era sempre essa, porque sim.

"Não olheis aos nossos pecados mas à fé da vossa igreja" sempre foi a frase que mais me impressionou. Basicamente, hordas de fiéis são exortados a confessar o que de mal fazem e a pedir a respectiva redenção, mas depois tentam lavar as mãos rezando para que o senhor olhe só para a fé e não para os pecados. Olhava à minha volta e não via pessoas a acreditar, via gente que seguia as marcações à risca (senta, levanta, ajoelha, agora diz isto, agora canta aquilo) e a voltarem para casa com a satisfação do dever cumprido. Não podia ir de saias curtas, nem pôr os óculos no alto da cabeça, nem cruzar a perna, nem pensar na lista das compras enquanto estivesse na igreja. Mas se lhe pedia que olhasse à minha fé e não aos meus pecados, parecia-me tudo incongruente.

"A Igreja é feita de homens, e os homens são pecadores. Não olhes para os exemplos terrenos mas sim para o divino", era outra das respostas que me davam às dúvidas. Se os outros, os que andavam por ali há anos tinham aquelas faltas todas, o que me dizia isso dos meus companheiros cristãos?

Depois havia as velhotas, que adoravam passar o dia na igreja, a mudar as flores e a conhecer os cantos à casa, como se fosse a delas. Não gostavam de mim e de uma amiga minha, porque éramos "demasiado bonitas" e alsaricávamos as hormonas aos rapazes - e já se sabe, hormonas alsaricadas, almas perdidas. Éramos quase piores que a televisão, porque estávamos ali.

O tal pároco, conservador, antipático, irracional, bruto e mal educado, gostava de mim. E eu gostava muito dele, por um qualquer desígnio que nenhum de nós entendia. Eu era a única que o punha em causa, que não lhe aceitava os porque sim, ditos com olhar duro e distante, tentando afastar as minhas dúvidas com as suas certezas. Em vez de se irritar comigo gostava de me ter por perto, e incentivava a minha presença assídua nos vários grupos. Por ele, fiquei mais tempo do que durou a minha fé. Apesar dele vim-me embora.

Ia apenas escrever uma graçola sobre o milagre pela televisão, e de repente a igreja veio-me com força aos dedos e à memória. O meu real problema é que queria mesmo acreditar e não consigo. Depois de ler que a Madre Teresa também não conseguiu durante décadas, fica-me a pergunta. O que é ser de Igreja? O que significa ter fé? Não preciso disso para ser uma boa pessoa, nem para ser forte, nem para enfrentar as adversidades. E no entanto sinto a falta de uma coisa que nunca tive.

14 comentários:

Anónimo disse...

também eu sinto falta de uma coisa que nunca tive.

curiosamente também havia muito "senta, levanta, ajoelha, agora faz isto..." e por aí fora...

e foi de certeza o mais próximo de deus que alguma vez estive, a julgar pela frequência dos "oh meu deus... oh meu deus..." que soavam desvairados e descontrolados por aquele templo que era o nosso quarto, enebriados pelo cheiro do inceso que fumegava da nossa pele, benzidos por.. "well, you get the picture, don't you?"

não perdi a esperança de ainda um dia construir uma nova jerusalém

sete e pico disse...

muito bonito este texto, a igreja é de facto um monstro estranho..

o chofer a dançar com a criada disse...

chamaram-me à atenção disso num dia destes, já repararam que nao existe até hoje uma única representação gráfica de adão e eva em que eles não tenham desenhado o umbigo?

choco disse...

realmente hoje em dia muito pouca gente acredita em Deus,com o que a vida nos da,so doenças ,problemas de guito,confusoes,desemprego,a lista é interminavel e em portugal com as condiçoes em que os sobreviventes(chamo assim a todos sportugueses residentes porque em portugal no e vive...sobrevive-se)ou herois como eu costumo apelidar...acredito que isto faz com que nao acreditemos na igreija,em Deus..etc...mas em qualquer momento da nossa vida algo acontece que faz com a nossa ideia sobre este tema mude....que será???um milagre!!uma visao!!!so sei que acredito que ha por aí algo e por experiençia propria, passada e acontecida acredito nesse algo!!!esperem que chegará a vossa vez!!!

dizia ela baixinho disse...

revejo-me numas e noutras coisas desta posta, q muito gostei de ler.

tenho p mim que a fé não se busca/encontra com a razão - foi nesse exacto ponto em que a perdi. mas... rewind.

nasci em junho. ainda não tinha completado 3 meses e, pumba!, o 1º dos sacramentos: o baptismo.

anos mais tarde, a par e passo com a instrução primária, puseram-me na catequese ao domingo, seguido dos inefáveis 50 minutos de missa. aos 6/7 anos, pumba! novo sacramento: a primeira comunhão. já podia comungar (aquele pão q se colava ao céu da boca e que não se podia trincar de forma nenhuma, diziam que era como trincar o corpo de jesus. e quem queria arriscar, naquela idade impressionável, uma dentada ao redentor?)

continuei a ir à missa e à catequese, num ritual que não ousava quebrar, a semanada só me era dada depois de cumpridos os deveres dominicais. a este facto acresceu outro: pertencer a um grupo de meninos e meninas que moravam num orfanato ali ao lado. eles eram/foram os meus heróis, todos eles.

veio a revolta hormonal, vieram forte e feio as primeiras dúvidas existenciais. já tinha cumprido a profissão de fé, quando esta se começou a desvanecer.

vieram a ciência e as suas respostas, muito convincentes (naquele período). deixei a catequese e não quis confirmar o meu 1º sacramento. foi assim que não fiz o crisma e abandonei - em consciência - a igreja.

durante anos, a ciência explicou grande parte dos mistérios que achava mais insondáveis.

dando um salto enorme no tempo, em termos de caminho da minha fé, dou por mim a concordar com esta minha múltipla:

"O que significa ter fé? (...) no entanto sinto a falta de uma coisa que nunca tive".

não sei se alguma vez a tive ou não. em consciência acho que não.
ando à procura. livre de igrejas. num processo que vai de mim para mim.

Filipe M. Reis disse...

Muito, muito interessante esta posta.
A reflexão sobre o desejo de ter uma experiência religiosa quando a matriz/origem dessa experiência é o catolicismo mainstream resulta muitas vezes neste "double bind": "queria mesmo acreditar e não consigo".
Boa busca interior é o que te desejo.

[A] disse...

8 e picos, subscrevo por inteiro o teu texto- até o raio do padre!( o "meu" ainda é vivo) que nas homilías dizia que atelevisão só ensinava os "cães a andarem atrás das cadelas a lamberem-se"... :)
quanto à fé olha que nem numa situção extrema (como já estive)consegui encomendar aos céus um milagre... a curiosidade pelo que move os crentes já me passou... as religiões não passam de pura manipulação (já dizia a marx).

Anónimo disse...

Bem, eu acho que essa coisa do milagre não servir e de ser preciso rezar para se arranjar outro não faz sentido e pior do que isso: it's bad for business. Afinal se o Escrivá lá chegou por milagres financeiros (aka santificação pelo trabalho) não vejo porque não se pode seguir esse critério para Fátima.
A igreja valida e promove a crença de que na Cova de Iria apareceu Nossa Senhora a 3 crianças. Fé que tem sido inegavelmente proveitosa para toda a gente. À volta disto cria-se o maior santuário Mariano do Mundo. Duas das 3 crianças são agora beatas. Mas... para chegarem a Santas é preciso mais um milagre ?! O que os levou a Beatos não chega? E quanto é que nos vai custar esse milagre adicional? Só em tercinhos e velas será um balúrdio. Em potencial receita perdida em esmolas e confissões nem se fala...
Mas tenho pelo menos outro problema de base no que toca aos critérios de santidade: parece que santo para ser santo precisa de milagre (e um não chega). Mesmo tendo tido vida comprovadamente virtuosa, sem sombra de pecado, ou mesmo que a igreja concorde que Maria lhe apareceu... não chega. Ou milagre ou nada. Pode bem um santo estar bem colocado nos rankings da virtude e obras de caridade... Sem conseguir sacar um milagre ao Patrão não vai a lado nenhum. Mal comparando, é como se o Engenheiro mais competente da empresa não conseguisse ser promovido só porque não é bom a dar graxa ao chefe. Pior: mesmo que o tenha feito com sucesso uma vez vai ter de arranjar coragem para repetir a dose. Isto são só maus exemplos. Curioso é que para a validação de milagres a igreja recorra à ciência. Se a ciência disser que a cura é impossível então, por exclusão de partes, foi o santo que intercedeu para a operação do milagre. Isto também não faz sentido. Deus pode ter acordado bem disposto e ter feito o milagre sozinho. Só porque lhe apeteceu. Mesmo que tenha sido um Santo a interceder para a conceção da graça, como é que alguém garante que foi aquele o Santo intermediário? Só porque o beneficiado o diz? Vai-se a ver e pode haver por aí muito milagre atribuido a Sto António que na verdade foi mediado pela Santa Escolástica, ou qualquer outro Santo obscuro que tenha o azar de não ter um bom public relations cá por baixo.
Haja vergonha.
Os 3 Pastorinhos deviam chegar a Santos sem brincadeiras destas. O Papa actual não acha Fátima sufientemente fancy, não acha piada ao museu de cera das aparições? Acha que aquilo não é muito credível teologicamente? Isso é tudo irrelevante. Pois se foi irrelevante no passado porque é que agora deveria contar? Deu-lhes agora para o fundamentalismo Santificador? Então comecem por riscar do mapa dos Santos todas as centenas que por esses séculos fora lá chegaram por cunha, diz-se-que-diz, alcavalas Papais e outros métodos ainda mais inconfessáveis.
Queremos 3 Santos e já!

foi dançar a bossa nova disse...

Minha queria Oito,

Quando comecei a ler o teu post (muito bom, aliás,) pensei "mau, vou ter de me chatear". Mas não.
Perguntas o que é ser da Igreja e o que é ter fé. E é verdade que não precisas disso para seres uma boa pessoa/forte/para enfrentar as adversidades.

Gostava de te poder traduzir por palavras o que é ter fé e o que significam as falhas de fé que qualquer católico tem ao longo da vida.

Digo, desde já, que não o vou conseguir agora, que para isso também são precisos argumentos racionais e doutrinais (desconhecidos para a grande maioria que adora ridicularizar a Igreja e a fé dos outros e que abundam por aí) e precisava de ir documentar-me, o que implica tempo, coisa que agora não abunda, mas vou tentar um mini curso pessoal e empírico:

- Perceber a verdadeira maravilha que é a liberdade do livre arbitrio;
- Perceber que o livre arbitrío que Deus nos deu é um faca de dois gumes, para nós próprios e para o Mundo, mas que traduz o verdadeiro respeito pela individualidade;
- Sentir que não estamos sós; que por pior que seja, há Alguém que nos ama sempre, para sempre, de uma forma verdadeiramente incondicional;
- Sentir que é esse Amor que muitas vezes - e quando o resto às vezes parece falhar - nos dá as forças que precisamos para continuarmos a ser melhores, mais fortes, para continuar contra todas as contrariedades da vida, para não desisitir; E sim, às vezes é díficil sentir isso ou ver esse Amor neste mundo que é tão feio e tem tantas coisas erradas e resistir à pergunta: "se Deus é verdadeiramente tão bom e tão poderoso como é que deixa isso acontecer?"
- Saber que não tem mal pensar na lista do supermercado quando se está na missa; Não é por isso que deixa de ter valor esse momento (que muitos outros há) de comunhão com Deus;
- Saber que a Igreja também é feita de homens e que eles às vezes erram e saber perdoá-los por isso, como nos perdoam a nós;
- Respeitar as formas que cada um encontra para se aproximar (ou não se deixar arrastar pra longe) de Deus, ainda que essa não seja a nossa e até possamos achá-la ridícula ou aproveitada por mercenários;
- Perceber o Perdão integral, daquele que não deixa marcas, cicatrizes, remoques ou tristezas a quem perdoa;
- Perceber que a Igreja não é feita de uma culpa permanente; que Deus sabe o que passamos e o que sentimos, às vezes como nem nós próprios e, como nos perdoa, não temos de carrgar culpa nenhuma, mas antes viver libertos, com alegria, com força;
- Perceber que para tudo isto às vezes é preciso rebelarmo-nos, afastarmo-nos, serenar, pensar, ler, procurar respostas, sentir essa falta, sentir esse vazio cá dentro e perceber que só Ele o pode preencher; Perceber que isso até pode acontecer várias vezes ao logo da Vida;
- Saber que se pode ligar a uma amiga quando se quer dar o passo em frente que ela vai ajudar-nos, o melhor que pode e sabe, a deixar de sentir esse vazio, que até acaba por ser a maior prova de fé!

beijos

Ele disse...

Muito bom exercício.

Um ateu.

Anónimo disse...

A Igreja é um monstro muito parecido com o monstro homem.
Com uma vantagem: se somarmos todos os disparates da Igreja ela fica sempre a ganhar porque só tem dois mil anos, enquanto o homem em geral tem mais uns anitos de disparates...
Tenho pena que o facto de perceber que só um doido varrido pode fundar a sua fé na qualidade dos interlocutores eclesiais a tenha afastado.
Existe um santo que se converteu de forma mais aprofundada depois de mergulhar nestas questões de cabeça. Ele viu nestas misérias todas um sinal da acção de Deus. Contrariando o seu orientador espiritual - homem esperimentado por sinal - resolveu fazer uma peregrinação a Roma. Quando regressou cheio de fervor espiritual foi interrogado com surpresa pelo tal orientador.
Ele respondeu: "Padre, depois do que vi em Roma, se a Igreja existe há tantos séculos é porque é mesmo conduzida pelo Espírito Santo."
Só uma notinha final.
Cuidado com o que pede...
Olhe que pode acontecer vir a ter o que sente falta.
E olhe que se acontecer vai perceber que por vezes a fé não é uma muleta mas uma carga de trabalhos :)

Anónimo disse...

À FÉ ? À FÉ só naum chega minha irrmã...

teinqui fázer sácrifissio...

JPN disse...

gostei muito de pensar a partir desta postada.

8 e coisa 9 e tal disse...

fiquei a pensar nisto, vejo que outras pessoas também. Agora vou processar os vossos inputs...

queria a dançar a bossa nova, pensei muito em ti quando acabei de escrever isto. Achei que de facto podia ser um bom ponto de partida para uma troca de ideias interessante. Sem dúvida, um workshop avançado.

é muito bom ter amigos profundamente católicos e que conseguem discutir questões complexas sem se tornarem muros de betão. Por exemplo, muito antes do referendo agora aprovado do aborto, a pessoa com quem mais e melhor discuti o que era e o que significava a sua despenalização foi com uma amiga completamente contra, e cuja argumentação não hermética foi muito útil para mim. Votei sim na mesma, ela votou não na mesma. Mas ambas ficámos com a boa sensação de termos discutido sem preconceitos uma com a outra.

"por vezes a fé não é uma muleta mas uma carga de trabalhos", acredito anónimo. É como o amor.