25 abril 2008

Finais de fevereiro de 2000

no prédio branco ao fundo ficava a sede do acnur em bogotá

Vim a Bogotá a uma reunião, é bom um bocadinho de frio para contrastar com o calor tórrido de Apartadó. Aqui em Bogotá aos domingos há a Ciclovia, uma avenida enorme (80km) que é cortada ao trânsito e onde só podem passar bicicletas ou patins. É muito simpático ver montes de pessoas a andar de bicicleta, de patins, a correrem e a andarem livremente na cidade. E tem imensos pontos de reparação de pneus, vendedores ambulantes que vendem ananás, manga, água, sumos, etc. Como há muita necessidade de emprego, qualquer iniciativa que se faça conta com uma boa infraestrutura que se autocria espontaneamente porque há sempre quem aproveite para ganhar mais uns cobres.

Outra curiosidade daqui desta terra. Imaginem que as FARC, uma das guerrilhas (a que esteve agora numa viagem pela Europa, a fim de conseguir apoios para o processo de paz) pede aos presidentes das câmaras(alcaldes) de uma série de sítios, uma vacuna, ou seja, 10% do total de orçamento da câmara. E se não pagarem imagina-se facilmente o que acontece, pois aqui sai mais barato contratar um matador do que meter um processo em tribunal, ainda que não fosse o caso. Por outro lado o Estado ameaça seriamente que se sai um só peso do erário público, os alcaldes serão sujeitos a processos judiciais agravados. Ou seja, os pobres estão entre a espada e a parede, pois o estado também não lhes garante a sua segurança e muitos nem sequer guarda costas têm. Alguns tiveram que vender as suas propriedades particulares para poderem pagar a tal vacina. È claro que com uma situação destas a solução é a corrupção ou desistir dos cargos públicos. Ser alcalde aqui é por a saúde em risco. Para juntar à festa, também os grupos paramilitares pedem, ou cobram, “impostos”, para cuidar dos interesses de determinadas pessoas. E as pessoas têm de pagar as vacunas a uns e a outros, para que ambos os deixem tranquilos, pelo menos até ao próximo mês.

Mas o melhor de tudo, e isto vou ter de gravar pois merece a pena, são os telejornais de aqui. Juro que depois de ver estes telejornais, o da SIC fica automaticamente categorizado com 5 estrelas. Aqui misturam notícias com publicidade e sem dares conta, pois os próprios apresentadores interrompem para fazerem publicidade a algum produto e voltam à noticia antes que tenhas tempo de processar o que ouviste. Todas as noticias são rapidíssimas e é rarissimo, mas mesmo rarissimo, desenvolverem alguma das noticias. Limitam-se às estatísticas: morreram x, sitio y, ataque de xxx, policia capturou z e já está, ainda estás a tentar perceber o que se passou e já estão com um outro assunto completamente diferente de politiquices nacionais, aí demoram-se um pouquito mais, e logo depois voltam a mais algum ataque segundo o mesmo modelo estatístico. Isto ocupa 5 a 10 minutos, dependendo dos ataques que tenham ocorrido (ou dos que queiram transmitir, porque nem tudo sai no telejornal). Depois vem o desporto, que tem um tempo de antena à descrição, é dado camarada. Nos últimos 10 minutos aparece uma modelo muito bem despida a comentar os fait-divers do jet-set, ou coscuvilhice da semana e a vender mais algum produto. O cenário aparenta o de um telejornal típico, não fosse a chaise-long onde ela se deita com um écran gigante por trás com a cara dela em grande plano. De tão ridículo é absolutamente hilariante, mas ao mesmo tempo é muito triste ver a falta de qualidade na informação e de análise das noticias. Mas aqui tantos os jornais como as cadeias de televisão são controladas pelos grupos económicos mais ricos do país e só isso já fala por si.

Amanhã vou ter uma festa com os amigos daqui de Bogotá, é o que se leva da vidinha. Só espero que dê para dançar, estou a precisar de meter a energia em dia e nada melhor para isso que dançar como se amanhã não houvesse.

Muitos beijos para todos os que estão por aí em terras lusas ou outras e por aqui no meu coração.

3 comentários:

dizia ela baixinho disse...

querida sete,

tenho seguido estes teus relatos/carta atentamente.

espero que continues a fazê-los, não obstante a ausência de comentários.

eu cá 'viajo' e emociono-me contigo.

que este sonho forme uma realidade, muito em breve.

um beijo no teu coração

Anónimo disse...

também tenho seguido.... e se não tenho comentado é porque me tem faltado o verbo. Alias, imagino que faltará também a muitos dos comentadores residentes, dos mais piadistas, aos intimidatoriamente geniais, aosprovedores, aos calorosos, aos mais íntimos. Silêncio, que aqui está a ser contada uma história que merece ser contada. 6 anos a trabalhar com refugiados na Colômbia... e vai comentar-se o quê? piadola fácil? comunhão de experiências? Falo por mim: não conheço ninguém com um trajecto destes, nem perto disso... A coisa socialmente mais empenhada que já terei feito foi dar uma esmola aos miudos dos pensos rápidos (piadola fácil). Das Senhoras do banco contra a Fome até fujo no supermercado (outra). Esse mundo aqui descrito para mim não existe. Nem o consigo imaginar. O meu Mundo é o da confortável praia ocidental, do cheiro a novo, da discussão pós-moderna, do cinema no King à sexta feira, do The Economist ao Sábado, do manyfacismo diletante.
Faltam-me as palavras e a preparação para comentar seriamente estes relatos.

8 e coisa 9 e tal disse...

obrigada manyfaces por tão sincero comentário e a ti também querida que diz baixinho.

Antes da minha partida, também este era um mundo completamente desconhecido e distante para mim, apesar de sempre ter tido interesse pelos temas sociais, mas só mesmo vivendo-os na pele comecei a ter uma visão mais real do que é uma vida onde o cheiro a novo não tem lugar.

A trabalhar directamente com pessoas desplazadas, ou em portugues deslocadas, só tive durante dois anos, depois passei para outro tipo de trabalho, a formar professores que trabalhavam com crianças desplazadas e, foi aqui que se tornou mais forte a minha paixão pela igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, a assessorar ongs para que promovessem a equidade de género nos seus projestos e cultura organizacional, mas isso é para outra crónicas que a minha vida deu muitas voltas.

Só uma aclaração técnica: fala-se de refugiados quando a pessoa sai do seu país por motivos de perseguição/ameaça politica ou religiosa e de deslocados (desplazados, em castelhano)quando a pessoa tem de deixar o seu lugar de residencia habitual por estar ameaçada a sua vida e se desloca para outro sitio dentro das fronteiras do seu pais. É este o caso da colombia, tem muito poucos refugiados fora e cerca de 4 milhões dentro, ocupa o segundo lugar em termos de desplazamiento, logo a seguir ao Sudão. Muitas das pessoas deslocadas andam de sitio em sitio, até que acabam por se concentrar nas grandes cidades, como Bogotá, que recebe cerca de 46% destas pessoas.