27 abril 2008

setembro de 2000 (parte 1)

Como muitos de vocês me perguntam o que faço eu no meu trabalho, aqui vai uma descrição de uma semana do meu trabalho.
4 feira, 20(?) setembro
Depois de um dia extenuante, com a oficina toda em polvorosa, pois desde carpinteiros, aos homens que instalam ares condicionados, visitas de missões Bogotá, etc, a Isabel e eu tivemos que ficar até às 8 da noite à espera de uma ONG acompanhante que vinha trazer uma líder dos desplazados das Comunidades de Paz que vai até Genebra, a um encontro de mulheres refugiadas e desplazadas de todo o mundo. Entre outros objectivos, estão os de divulgar o problema do desplazamento para sensibilizar as pessoas e para que alarguem o mandato do ACNUR para protecção dos desplazados internos (até agora formalmente só temos mandato para protecção de refugiados) e convencer os países doadores, vulgo comunidade internacional, a investir, se é que se pode utilizar este termo aqui na Colômbia. Enquanto esperávamos, resolvemos fazer yoga e gritar bem alto que é do melhor que há para libertar o stress. O problema sempre são os vizinhos, mas parece que já não estranham.
5ª feira
Acordei às 6 da manhã (coisa que por mais que eu me esforce me continua a custar) para ir para o aeroporto de Chigorodó receber 250 desplazados da zona de Cacarica que estavam em Bahia Solano desde 1997. Muitos deles vão ver as suas famílias pela primeira vez em 3 anos, pois quando se desplazaram muita gente se perdeu das suas famílias, e com o medo e o terror uns fugiram para Bahia Solano e outros para Turbo. Agora vão reencontrar-se em Turbo para depois iniciarem o seu retorno definitivo, tanto quanto podem ser definitivas as coisas nesta vida, a Cacarica/Chocó ou o seu reassentamento, pois algumas destas pessoas já não querem voltar para Cacarica, o que é compreensível. Depois de um desplazamiento tão terrível como este, em que o ser humano chegou ao ponto de jogar futebol com as cabeças dos mortos, têm medo e não querem reviver o horror e a possibilidade de passar por tudo isso outra vez. E também, durante estes anos, muitos dos que eram meninos e meninas passaram a jovens, e a recordação da vida no campo diluiu-se e agora não querem trocar a vida urbana pela rural. Às 7 da manhã lá estava eu no aeroporto de Chigorodó, mais ou menos a 30 km de Apartadó. Ninguém à vista. Achei estranho e resolvi ir até outro aeroporto em Carepa, a 20 km, e nada também (aqui os aeroportos são pistas pequenas onde podem aterrar avionetas e aviões pequenitos). Resolvi regressar para Apartadó, mais 30 km, e quando já estou na cidade passa um dos carro das ONGs que também ia acompanhar este retorno. Lá fomos todos outra vez. Como continuamos com as comunicações cortadas, parece que a guerrilha rebentou uma torre de comunicações aqui perto, não nos puderam avisar que o voo tinha sido adiado. Mas como aqui todos temos que passar pela mesma estrada, sempre há algumas possibilidades de nos encontrarmos.
Regressámos ao primeiro aeroporto e finalmente chega a primeira avioneta. Grande expectativa, câmara fotográfica preparada e... só vinha mercadoria. Na lista entre outras coisas estavam 20 galinhas, 7 cães e 3 gatos. Parece que as pessoas chegam mais tarde, quiseram mandar primeiro a mercadoria para assegurar-se que não perdem todas os seus poucos pertences duramente conseguidos ao longo destes três anos.
10.00 horas. Lá vou eu para uma reunião de Personeros, figura administrativa, do Ministério do Interior, e que é responsável pela defesa dos direitos humanos dos cidadãos, entre outras coisas. O sistema administrativo aqui é completamente diferente do nosso e custou-me algum trabalho perceber o que são Fiscais, Procuradores, Defensores do Povo, Personeros, etc. (também é preciso confessar que nunca tinha dedicado muito interesse a perceber como funciona o sistema jurídico/administrativo português). Esta reunião foi convocada por nós, ACNUR, com a ajuda de dois Personeros, pois uma das nossas linha de trabalho aqui é precisamente fortalecer o papel e as acções do Estado, o que é uma tarefas hercúlea, pois a ausência de estruturas e toda a indefinição e acumulação de papéis das instituições estatais, aliadas a uma ausência geográfica das mesmas e a uma incipiente tradição do Estado como representante democrático da sociedade, fazem com que não seja fácil encontrar um fio por onde puxar a meada desta nossa função.
Na Colômbia, a entidade estatal responsável por coordenar a ajuda aos desplazados é a Red de Solidariedad Social (RSS), que é ao mesmo tempo responsável pela terceira idade, descapacitados, pobres e por todas as causas sociais, com excepção da proteccao aos animais. Não têm fundos, têm 3 gatos pingados para toda a zona de Urabá, um carro que se avaria cada três dias (ainda hoje ficou outra vez no meio da estrada) entre muitos outros problemas. Só para verem um bocadinho do filme, houve inundações em Rio Sucio em Fevereiro deste ano. Veio o presidente da RSS de Bogotá e com um grande alarido disponibilizou, diante de toda a população, 20 milhões de pesos para a ajuda de emergência. Nos seis meses que se seguiram, o coitado do coordenador local da RSS teve que ouvir de tudo por parte das pessoas que reclamavam o dinheiro que lhes tinha sido prometido. E o rio subiu e baixou por mais três ou 4 vezes sem que o dinheiro viesse em nenhuma das marés. E o presidente manda assim as coisas ao ar e volta para o seu escritório em Bogotá como se nada fosse. Enfim, é um estado tão ineficiente que até assusta.
Continuando, lá fui eu mais 30 km agora noutra direcção. Pela estrada vêm-se imensos abutres, é um animal muito comum aqui, junto com os cavalos. E nas estradas como já contei muitas vezes, é tudo louco. Até os cães. Hoje estava um cão a coçar as pulgas no meio da estrada, com uma tranquilidade como se não fosse nada com ele. Instinto de sobrevivência nulo. E também é muito comum ver duas bicicletas que ocupam toda uma via só porque vão a conversar. Mas o que mais me impressionou foi ver outro dia um homem de bicicleta com uma mão no volante e um bebé de meses debaixo do braço, guiando tranquilamente no meio deste trânsito caótico.
Mas concentremo-nos outra vez. Terminou a reunião e lá fomos outra vez para o aeroporto (mais 30 km), desta vez sim saíram pessoas. Depois de mais duas horas de espera lá fomos todos em caravana (médicos del mundo, brigadas internacionais de paz e acnur) a escoltar a chiva com as primeiras 60 pessoas até Turbo, onde vão ficar até ao segundo retorno para Cacarica que será em Outubro. Aí sim, foi muito emocionante ver a alegria do reencontro das pessoas que durante mais de 3 anos estiveram separados. De repente, uma senhora pôs-me um bebé de meses nos braços e foi abraçar os seus familiares, desaparecendo antes de eu ter tempo de dizer alguma coisa. Ao fim de uma hora comecei a preocupar-me, mas ela lá apareceu.
8.30 pm. Finalmente regressei a casa. Depois de ver um filme sobre uma rapariga psicopata que se apaixona por um professor e mata pelo menos a 7 pessoas, temática recomendável para aliviar o stress, vim continuar esta carta. E agora vou dormir que amanhã continua a odisseia. São 11 p.m.

1 comentário:

na prise és bestial disse...

e o teu vicio pela betty la fea, não é desta época? (a sinopse do filme da psicopata apaixonada pelo professor lembrou-me as tuas descrições da betty)