25 janeiro 2007

Ensaio

Atravessava a cidade, observava as pessoas. Apressadas no seu passo urbano, passavam pelas passadeiras, esperavam impacientes o autocarro, detiam-se nas montras com olhares ávidos. Apertadas nos seus fatos, nos seus corpos, nas suas prisões sociais, nas convenções que se lhes pegam ao ser como se de uma segunda camada de pele se tratasse. Os homens com fatos e gravatas, iguais entre si, produtos do mesmo modelo que lhes diz que para pareceram sérios e responsáveis necessitam de uma farda que o demonstre. As mulheres com as suas saias apertadas, um pouco mais coloridas mas igualmente presas a uma tristeza que insiste que a vida é assim e não pode ser diferente. Todos iguais, com ares tristes ou zangados, vazios de personalidade, cinzentos, escuros no vestir e na alma. Só os velhos pareciam caminhar de forma diferente. Paravam nos bancos de jardim, sentados olhavam como se o mundo estivesse todo à sua frente para ser admirado. E de repente passa ele, com todo o seu corpo atravessa o ar com um jeito tranquilo, dengoso, bonito, leva no rosto um sorriso e no corpo uma gabardina vermelha que avisa ao longe que ele vai passar. Lembro-me da súplica do Manyfaces, abro a janela do carro, passo junto a ele, e sem tirar os óculos escuros digo: “Deixe-me dizer-lhe que o senhor é muito mais do que razoavelmente bom, é uma luz intensa que atravessa toda a cidade.” A cor da sua gabardina reflecte-se na minha face, envergonhada, arranco rapidamente. Merda, não sei mandar piropos, corro para casa e ensaio de novo em frente ao espelho.

11 comentários:

o chofer a dançar com a criada disse...

hahahahahahahahahahahahahahaha.

muito bom !!!!!!

Alba disse...

:)
Olha, eu há uns anos, em pleno ressaca amorosa, impus-me o seguinte exercício de desinibição: dizer a um empregado de uma agência bancária onde, na altura, ia todos os dias, qualquer coisa como "Deixe-me adivinhar o seu perfume. É....(já não me lembro), não é?" E assim o fiz. Ao que parece acertei no perfume, mas o rapaz ficou tão corado e eu tão "à toa" que durante muito tempo não voltei a esse agência!!! Não sei como os homens podem dizer tolices desse tipo sem se "desmancharem" completamente, deve ser muita prática!

Anónimo disse...

Estou emocionado... "Será que o Mundo vai ser salvo assim?" (como diz o novo bardo Luso-tropicalista)!
Sete e picos: és a maior!

Agora espero que o sacana (isto é inveja) da gabardina retribua a graça e espalhe a felicidade aí pela cidade... A minha visão mistica é a da construção de uma espécie de cadeia-universal-do-piropo: Quem recebe um é obrigado a retribuir. Imaginem o da gabardine a jantar e de repente, eh pá esqueci-me de retribuir o piropo. Sai de casa apressado, cruza-se com uma mulher e pumba, mais um piropo. Regressa a casa aliviado e feliz e vai marcar mais uma cruz na sua agenda de piropos(coluna do deve).

D. Ester disse...

LINDO!!! eu ainda n consegui passar dos sorrisos... mesmo assim, acho que não ficam mal servidos.

Anónimo disse...

olha...o "pay it forward" (Kevin Spacey, Helen Hunt, 2000) mas limitado ao piropo.

Quanto ao script, dava para um anúncio da Thiery Mugler ou Hugo Boss... com nível e fora dos padrões habituais, gostei :)

8 e coisa 9 e tal disse...

ó many faces para além de conselheiro tesal também te andas a especializar em identificação de múltiplas? Descubriste-me a careca, isto é a identidade multipla...

alba, deve ser mesmo muita prática pois dizer piropos dá uma vergonha incrível, entre mulheres estamos habituadas a elogiarmo-nos umas às outras mas com eles é muito mais dificil...ainda para mais se quiseremos evitar as formas desenxabidas, previsiveis ou abrutalhadas que muitos deles nos "amandam" . Um piropo bonito, discreto e sentido éum elogio para o ego, um piropo bruto ou daqueles que parece que vêm no manual de bolso dos piropos é uma ofensa ou uma seca, respectivamente. Por isso um sorriso é já um lindo piropo dona ester.

Mas enfim, continuemos a praticar que a prática faz o mestre ou a mestra, porque no fundo do peito de cada razoavelmente bom/boa também bate um coração que precisa de miminhos.

na prise és bestial disse...

Ah ganda sete e picos oito e coisa nove e tal! Vou começar a ensaiar ao espelho, à espera de uma boa oportunidade para um exercício prático.

Anónimo disse...

"...porque no fundo do peito de cada razoavelmente bom/boa também bate um coração que precisa de miminhos."

Muitos miminhos, é verdade. Acredito que muita gente crescida sofre de carência miminhica e há uma boa razão para isso: nos primeiros anos de vida mimos é que não faltam, é uma grande overdose de mimos por todo o lado. Até parece que a vida vai ser mesmo assim para sempre... Depois a coisa diminui (como se eles deixassem de ser precisos) e quando se entra na adolescência não só eles desaparecem das fontes onde abundavam como tendem a degenerar quando se procuram outras fontes: Vem o sexo e desaparece o mimo, fica tudo meio misturado. Mas sexo não é um substituto à altura, não tem nada a ver....
Entra-se na idade adulta e então é trágico. Mimos ficam a zero. Quando entramos em casa ninguém nos aperta as bochechas, ninguém nos ajeita o cabelo com beijinho na testa, acabam-se as cócegas nas costas....
A mim acontece-me ver um sortudo dum miudo a levar uma bela beijoca de mimo e eu fico a pensar "sacana do miudo, o que eu não dava por uma beijoca destas, o que eu não dava..." Ou então o miudo a ver televisão e a levar uma sessão de cóceguinhas nas costas e pensar "Meus Deus, há quanto tempo não me coçam as costas, eu que tenho um vício danado nessa coisa". Devo fazer o quê, digam-me? Pagar a uma prostituta para me coçar as costas? Isso é uma opção um bocado clandestina mas por outro lado não fica muito bem chegar a casa e declarar a toda a gente "desculpem lá mas se ninguém me coça as costas eu vou tratar da minha vida de outra maneira".

D. Ester disse...

Oh manyfaces, devo dizer-lhe que tem amigos e namoradas razoavelmente fraquinhos em termos de manifestações de afecto. Eu cá peço mimo, e faço beicinho quando não mo dão, sento-me no colo e enrosco-me. E dou mimo e beijinhos, festinhas no cabelo e elogios. Só me recuso a apertar bochechas porque detesto que mo façam (sim, ainda há quem me aperte as bochechas, dizem que são melhores que as bolas antistress). Sou uma mimada e mimadora assumida.

Por isso, sim, quando chegar a casa diga que se não lhe coçarem as costas vai tratar da sua vida de outra maneira.

Um cafuné para si.

Anónimo disse...

Um cafuné já cá canta. E ainda dizem que isto dos blogs é tempo perdido.

nove e tal disse...

só esta posta p me fazer rir... (ó nuvem negra malvada vai-te embora!)

beautiful!

(clap clap clap)