05 outubro 2006

Uma semana

Desculpe, não é para pedir tabaco, eu tenho cigarros, mas queria saber se as senhoras me podem dar aquele selo do maço, eu junto-os e entrego-os no quartel dos bombeiros, diz que é para arranjar uma cadeira de rodas, eu não sei se é verdade ou não. Cheguei há uma semana, andei quase quarenta anos a descontar para aqui, é muito difícil entrar neste lar, estas casinhas baixas, estes jardins, é uma categoria, quase parece o Algarve. Andei quase quarenta anos a descontar para aqui, mas quando me ligaram a dizer que tinha vaga chorei como uma criança, dei os meus periquitos à vizinha, o que eu adorava os periquitos e as duas gaiolas novinhas em folha, a casa ficou com tudo no lugar, a minha filha comprou-me um enxoval, roupão de seda, roupão turco, pijamas, gastou um dinheirão com aquele enxoval, que até para vir para aqui uma pessoa tem de vir bem vestido. A minha casa ficou com tudo no sítio, a minha filha diz que não quer nem um copo da minha casa, mas daqui as uns tempos vão lá aquelas camionetes dos drogados ou lá o que é, e levam tudo sem lhes pagarmos nada, é assim a vida. Eu cheguei há uma semana e já aumentei dois furos do cinto das calças, a comida aqui é uma maravilha, de manhã duas almoçadeiras e dois papos-secos, a sopa é uma categoria, a minha filha quando cá veio no domingo disse logo o pai está mais gordinho, está muito bom. Eu gosto de estar aqui, já fiz amigos, digo bom dia a toda a gente, alguns não me respondem mas acho que é porque são surdos, no fim-de-semana se a minha filha me vier buscar é só para almoçar porque ela já me disse pai não pode ser mais gastei um dinheirão com o enxoval, e é verdade, até um roupão de seda novo ela me comprou. Eu gosto de estar aqui, subi dois furos no cinto das calças, a comida é como num hotel, o quarto só tem mais três pessoas, fiz muitos amigos, a minha filha já não precisa de se preocupar comigo, mas às vezes ponho-me a pensar na minha vizinha, sempre a correr da repartição para o jantar dos miúdos em casa, que isto a vida é mesmo assim, coitada se calhar não se lembra de alimentar os meus periquitos, e dá-me um aperto no peito que as senhoras não imaginam.

5 comentários:

Anónimo disse...

a mim também me dá aqui uma pedrinha encastrada aqui no ventriculo esquerdo, como dizia uma multipla, quando penso nos velhotes e em nós a caminharmos para lá, porque para novas não vamos, e em que não tenho quase nada desocntada para reforma e na ameaça constante do sitema de pensões, e nos meus gatinhos que ficaram com um amigo..

Anónimo disse...

e mais não digo

dorean paxorales disse...

O estilo soa-me familiar...

Anónimo disse...

é por isso mesmo que é estilo

Menina Rabisco disse...

Felizmente os meus velhotes (os meus avós) viveram independentes, nas suas casas, até oa fim das suas vidas. Conseguimos fazê-lo porque nunca tiveram doenças complicadas e sempre conseguiram tratar de si. No entanto, às vezes pergunto-me...como será com os meus pais??
Texto muito bonito. Parabéns.
Beijinhos