15 fevereiro 2008

“Deus Caritas Est”

No nosso último jantar, já não sei quem dizia que, às vezes, não se notavam algumas das minhas diferenças em relação às outras múltiplas. A explicação é simples: não deixo, por causa dessas diferenças, de ser mulher e há alturas em que sou apenas isso, como as demais.

No entanto, este post sobre o amor e este sobre dúvidas teológicas, puxaram este que já andava para ser feito há muito tempo. Calhou na Quaresma, época especial para os cristãos.


“3. Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. (…). Na crítica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo, (…) o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros (…). Este filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?
4. Mas, será mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros? (…)
5. Dois dados resultam claramente desta rápida visão sobre a concepção do eros na história e na actualidade. O primeiro é que entre o amor e o Divino existe qualquer relação: o amor promete infinito, eternidade — uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. (…)
(…) Isto depende primariamente da constituição do ser humano, que é composto de corpo e alma. O homem torna-se realmente ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em íntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando se consegue esta unificação. Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e consequentemente considera a matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza. (…) Mas, nem o espírito ama sozinho, nem o corpo: é o homem, a pessoa, que ama como criatura unitária, de que fazem parte o corpo e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade, é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só deste modo é que o amor — o eros — pode amadurecer até à sua verdadeira grandeza.
Hoje não é raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversário da corporeidade; a realidade é que sempre houve tendências neste sentido. Mas o modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, é enganador. (…) Na verdade, encontramo-nos diante duma degradação do corpo humano, que deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existência, deixa de ser expressão viva da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado para o campo puramente biológico. A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-se em ódio à corporeidade. Ao contrário, a fé cristã sempre considerou o homem como um ser uni-dual, em que espírito e matéria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-nos elevar «em êxtase» para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos.
6. Concretamente, como se deve configurar este caminho de ascese e purificação? Como deve ser vivido o amor, para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina? (…)Primeiro, aparece a palavra « dodim », um plural que exprime o amor ainda inseguro, numa situação de procura indeterminada. Depois, esta palavra é substituída por « ahabà », que, na versão grega do Antigo Testamento, é traduzida pelo termo de som semelhante « agape », que se tornou, como vimos, o termo característico para a concepção bíblica do amor. Em contraposição ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo exprime a experiência do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o carácter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o. (…)
Por outro lado, o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom. Certamente, o homem pode — como nos diz o Senhor — tornar-se uma fonte donde correm rios de água viva (…); mas, para se tornar semelhante fonte, deve ele mesmo beber incessantemente da fonte primeira e originária que é Jesus Cristo, de cujo coração trespassado brota o amor de Deus (…).”
Excertos da parte inicial da I Parte da Encíclica Deus Caritas Est

9 comentários:

Anónimo disse...

Não sei se deu por isso, mas logo no inicio do texto, perguntava qualquer coisa como "Mas, será mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros?"

Retomo o que está escrito no início..."Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de Eros." (o E em maiúsculas... haja respeito)

Depois conclui-se que " amor...mas, para se tornar semelhante fonte, deve ele mesmo beber incessantemente da fonte primeira e originária que é Jesus Cristo, de cujo coração trespassado brota o amor de Deus (…)."

Ou seja, os Gregos tinham uma noção de amor que não carecia de Cristo ou Deus, tal como criado pelos cristãos/católicos.

Os Cristãos/Católicos só entendem o amor como está referenciado acima.

Ou seja, são duas noções incompatíveis...

Ao quererem substituir uma pela outra estão efectivamente a matar a dos Gregos.

Haja tolerãncia e humildade e aceite-se a dos Gregos e a dos Cristãos/Católicos e entenda-se que são diferentes com pontos comuns e sobretudo, não se envie padres, padrecas e faltas-de-quecas para dar cabo de outras visões do mundo (aqui já a história a dar conta de nós e não o simples plano conceptual das ideias)

8 e coisa 9 e tal disse...

E, sobretudo, teria sido bom que, efectivamente, tivesse ido com calma.

Anónimo disse...

Ok...

Num litro de água a ferver adicione uma colher de sopa de erva cidreira e repare que para se tornar semelhante fonte, deve ele mesmo beber incessantemente da fonte primeira e originária que é Jesus Cristo, de cujo coração trespassado brota o amor de Deus (…).

Um dogma é um dogma é um dogma, for Chrissake...

Qualquer coisa pode ser rematada com "e isto é o fruto de Deus em nós e nós somo s o fruto de Deus n'Ele"

É absolutamente vazio, fútil, empregar Deus como argumento... como se o empregar o nome d'Ele fosse validação do que quer que seja.

Deus é superior a isso, é tudo e não pode nunca ser uma parte. Não tem explicação. É um mistério.

Irra, sou ateu e não preciso de argumentos para compreender Deus nas pessoas que acreditam n'Ele. Reduzir o Divino à Lógica ??? Isso sim, merece uma boa fogueira...

quanto ao escritos do Rotweiller, o tal que ainda não eliminou o Index... é deixá-los andar que o pessoal gosta de fazer lume é nas brocas...

Anónimo disse...

em nome da multiplicidade, alguém poste aqui, para desenjoar,a parte 1 do kama sutra.
agradecido

8 e coisa 9 e tal disse...

anónimo que talvez ainda perceba qualquer coisa disso:
Não percebi onde vê a redução do Divino à Lógica. Nesta parte, só vejo a explicação do que pode ser o amor entre um homem e uma mulher que crêem em Deus e como Deus é para eles também fonte desse amor.
Ou seja, parece-me que o mistério de Deus é aqui um dado pré-adquirido.

Anónimo disse...

O eros grego - tal como a mitologia que o envolve - exprime uma dimensão presente na existência: a pulsão erótica dos seres sexuados.
Pulsão. Diferente de instinto directo e involuntário.
A civilização helénica clássica escolhe como regulador dessa pulsão a estética (busca do belo).
A civilização da cristandade escolhe como regulador dessa pulsão o martírio (capacidade de testemunho do amor primordial de Deus em Cristo)
Alguns pensam que o eros existia em estado puro e depois
desaparece qual capuchinho vermelho comido pelo lobo mau da inquisição da santa madre igreja... lol
Cada um - e cada cultura - "castra" o eros segundo uma chave hermeneutica diferente.
Cada um escolhe a que quer.
Ou a que pode...
Há para aí histórias felizes, outras nem por isso...
A do Rotweiller até nem correu mal de todo: um jovem do exército alemão confuso com tudo o que lhe foi dado a ver e que foge e corre em buca da verdade (uma outra que não a da animalidade medonha da guerra) e no final da vida é escolhido por uma comunidade de alguns milhões para ser o primeiro garante da verdade que a anima... Nada mal...
Pessoalmente encetei há pouco um novo peregrinar em busca da verdade, mas desconfio que não terei o mesmo sucesso...
Para começar tenho um dogma mau que me persegue. O brilho luminoso de dois eros em estado puro olhando para mim sempre que cerro os olhos e levanto as pálpebras da memória.

Anónimo disse...

Em matéria de Fé prefiro uma boa convicção que qualquer tentativa de demonstração que assim é.

O remate com "ou a que pode..." tem barbas, desde os actos dos apóstolos, cartas aos corintios, s. paulo... e é o nosso triste legado ocidental de culpabilidade e hipocrisia.

"o mais puro é ser casto, mas quem não puder, quem não aguentar, que se case, em todo o caso o sublime é ser casto, só os melhores o são" - em tradução livre

-------------------------
Não falo do passado do Rotweiller, porque o que se faz aos 14 anos nos anos 40 é algo de muito diferente do que se faz aos 14 hoje...seria muito fácil embarcar por esse caminho e consequentes teorias da conspiração. não, o "pseudo-passado nazi" é uma falsa questão, assim como o "ver a luz e sair do horror da guerra".

O que já não é uma falsa questão é o que ele fez depois.

Por isso, sim, é um final feliz, ter sido o Inquisidor-Mor durante um ror de anos, manobrar nos corredores do poder do Vaticano, e arranjar os votos de uns quantos cardeais... os milhões, salvo melhor opinião, não tiveram palavra.
Se tiver muitas dúvidas, lembre-se do Boff...

Se tiver mais dúvidas leia os inspirados e divinos escritos da Congregação para a Doutrina da Fé (vulgo Inquisição).
E lembre-se que o Index ainda existe.

Vá lá então à sua peregrinação, mas lembre-se que nela não se pode levar livros de :

Woody Allen, Isabel Allende, Karen Armstrong, Margaret Atwood, Judy Blume, Roberto Bolano, Joseph Campbell, Gustav Flaubert, Allen Ginsberg, Mary Gordon, Gunter Grass, Andrew Greeley, Herman Hesse, Adolph Hitler, John Irving, James Joyce, Carl Jung, Eugene Kennedy, Jack Kerouac, Stephen King, Milan Kundera, Hans Kung, Harold Kushner, Henri Lefebvre, Doris Lessing, Sinclair Lewis, Richard P. MacBrien, Mary MacCarthy, Malinowski, Karl Marx, Somerset Maugham, Toni Morrison, Alice Munroe, Vladimir Nabokov, V.S. Naipaul, Pablo Neruda, Nietzcshe, Octavio Paz, Harold Pinter, Marcel Proust, Philip Roth, Bertrand Russell, John Updike, Gore Vidal, Voltaire, Alice Walker, Gary Wills e Tennessee Williams.

mas assim como assim, como se dá umas fora do matrimónio, porque não passar, com luxúria, os olhos pelos autores proibidos? afinal, se não fossem essas coisas, ser Católico não tinha piada nenhuma.... e Deus perdoa.

Anónimo disse...

Vejo que se ignora por completo o que foi a influência do estoicismo e suas produções subsequentes - não de origem cristã - no pensamento ocidental medieval. Bem como as doutrinas "científicas" da altura que consideravam a mulher como parte neutra na reprodução e as consequências disto nas
doutrinas socias e económicas que deram origem ao paradigma biológico-instituicional do matrimónio e das leis morais do direito ao uso do corpo.
Vejo que se ignora por completo no curricvlvm vitae do Sr. Rotweiller a sua influência determinante no Concílio e a escola de reflexão criada com Von Baltasar que foi uma aurora de frescura na Teologia Fundamental e Sistemática.
Vejo que se ignora por completo a reflexão de Boff, senão percebia-se a sua distorção face ao pensamento cristão tomado como um todo (e mesmo face à reflexão originária da Teologia da Libertação na visão do seu pai Gustavo Gutiérrez)e as consequencias negativas que teve nas comunidades onde a sua visão pastoral foi implementada.
Vejo que se ignoram os verdadeiros erros - na minha opinião - das posições do Sr. Rotweiller que nada têm a haver com o enunciado. Mas aqui não vou dar armas. Viravam-se contra mim e ainda perdia a minha fé e punha-me para aí a ler essas obras do maligno lol
Para a minha peregrinação levo uma coisa muito cristã: esperança. Uma enorme vontade de me comprometer com a vida sem medo de falhar. De por as mãos na lama. Mesmo que ao fazê-lo se turve um pouco as águas com a merda acumulada.
Citando uma das tais cartas de Paulo: spes ancora animae.

Anónimo disse...

só faltou dizer, mas essa falta é generalizada e calha a todos, a começar pelo que está aqui a escrever isto, "em minha opinião"