20 novembro 2006

Sim, pelo direito à vida

Aproxima-se o referendo e por essa blogosfera fora aumentam as postas sobre o tema, uns a favor do sim, outros acérrimos defensores do não. Eu confesso que já não tenho paciência para argumentar o tema, a minha veia democrática colapsa quando ouço falar na humanidade do embrião, na consciência que as mulheres devem ter para proteger-se de uma gravidez não desejada, no direito à vida. Dá-me vómitos, arrepios, eczemas e outras coisas piores. Não suporto a hipocrisia das organizações que defendem o direito à vida e que, pretendendo ser coerentes, criam organizações para apoiar a mulher grávida. Mas então a defesa da vida do bebé acaba no momento do seu nascimento? Se um filho ou filha é para toda a vida como é que se podem desejar que ele ou ela nasçam sem ser desejados, queridos, sonhados? Mas não vou argumentar se é uma questão do direito ou da ética, dos direitos das mulheres sobre o seu corpo ou da vida do embrião, enfim, deixo isso para outros bloggers que o farão melhor que eu.
Mas pela importância do tema também não quero deixar passar em branco esta fase pré-referendo, por isso vou contar a minha vivência pessoal.

Há mais de dez anos atrás fiquei grávida, tinha vinte e poucos anos, ainda não tinha acabado o meu curso, andava louca de amores por um homem muito especial, mas casado, com filhos e mulher. Naqueles arrebatos de loucura desenfreada e de sexo místico, uma das noites achei que o preservativo era desnecessário, que nada nos iria passar a nós, ao nosso amor protegido pelos deuses. Acho que quando se é jovem pensa-se que se é imortal e incólume aos males dos mundo, o mundo é hoje e agora e o amanhã nada passará. Resultado, teste da gravidez positivo. O mundo desabou, ainda tentei durante uns dias fazer de conta que não era nada comigo mas não foi possível, andava num tal estado de elevação, parecia que pairava no ar, e ele adivinhou o que me estava a passar sem que eu o dissesse. Ainda sonhámos durante uns dias em como seria se tivéssemos o bebé, se fosse uma menina, pois ele só tinha rapazes com a sua mulher, em como contaríamos à minha família (os meus pais) e à sua (mulher e filhos) da nossa alegria e da nova criança que aí estava para vir e que queríamos que fosse amada por todos. Enfim, sonhámos e iludi-me por um tempo, até que de repente tive um ataque de realidade e pensei em tudo aquilo que ainda queria fazer, na minha ânsia de descobrir o mundo, a mim, de liberdade, de viajar, nas possibilidades reais da nossa relação. E é aí que ele me diz Tu é que sabes, eu faço o que tu quiseres fazer... Esta frase foi crucial na minha decisão, não foi claro o único factor mas fez-me cá dentro um click, um aperto no peito. Então e ele, qual é que era o papel que ele estava disposto a assumir e a dar, qual era a sua vontade, apenas um reflexo da minha? Acho que começou aí o meu desamor por ele que ainda mais confirmava a minha decisão.
E através de uma amiga que tinha uma amiga que sabia de uma médica que fazia anjinhos, como dizia a minha avó que era sábia e que já tinha passado pelo mesmo, lá fui, determinada a fazer o que tinha que ser feito acompanhada por duas amigas. A última coisa que vi antes de entrar para a sala foi a Serenela Andrade a dizer que alguém tinha ficado alapardado, em vez de apardalado, e isso foi o mote para ter um ataque de riso, como sempre acontece quando fico muito nervosa ou tensa com alguma coisa.
Hoje mais de dez anos passados, claro que sinto a culpa e o desconforto, não se fica incólume, sofrem-se dores físicas e psicológicas, na altura e até muito tempo depois, senti remorsos, martirizei-me pensando em como seria se tivesse ido para a frente com a gravidez, como seria a criança, enfim. Mas bem feitas as contas e a prova dos nove, olhando para trás na minha vida, não me arrependo de ter abortado, assim com todas as letras, a minha vida teria sido muito diferente e não como a sonhei e desejei. E ainda mais reforço este meu não arrependimento tendo agora uma filha que foi muito desejada e sabendo tudo o que implica a gravidez, o nascimento e a criação de uma criança. Fiz uma opção, e tive a sorte de não ter sido julgada e condenada por tribunais e leis que ainda acreditam que o direito à vida é o direito a nascer.
Eu também acredito no direito à vida, mas a uma vida mais além da possibilidade de respirar este ar que nos rodeia. Acredito que cada criança quando nasce tem o direito de ser desejada e amada e que cada mulher e cada homem quando ficam grávidos têm direito a escolher qual o projecto de vida que desejam, têm direito a querer ser ou a não querer ser pai e mãe. E mais não digo. Agora só resta esperar pelo referendo.

9 comentários:

Isabela Figueiredo disse...

Muito bem.

Anónimo disse...

Muito bem ao quadrado. Condensaste num único texto todas as razões para votar SIM.

Anónimo disse...

"Geralmente as mulheres apareciam sózinhas ou com uma amiga... acredita?"

pois claro que acredito pirata, aceite como uma anormalidade que a maioria dos seus comparsas de género se demitem sempre que podem da sua quota parte de responsabilidade.

cara multipla, texto corajoso e importante. Estou farta dos argumentos idiotas do costume: por um lado os direitos do feto e por outro a privatização das barrigas. Haja humanidade!

dizia ela baixinho disse...

múltipla, parabéns pelo teu texto. louvo-te a coragem de desenterrares um episódio triste como este e de o relatares na primeira pessoa.

pirata, boa pergunta a sua, onde é q estão os co-autores nestas horas? infelizmente, eu careço de resposta. se calhar a distância daqui a espanha é muito grande (isto, no caso em que há dinheiro p tanto, para muitas mulheres o recurso ao misoprostol continua a ser a alternativa e depois seja o que a sorte quiser nos bancos da urgência de um qq hospital). se calhar é um 'assunto de mulheres' (decidido e legislado maioritaria e paradoxalmente por homens), se calhar é cobardia pura, envolta num manto de culpa e pecado tão tipicamente católicos.

Anónimo disse...

Maldito ano esse, apre!! Aliás, como prologo tivemos aquela auspiciosa passagem de ano :))

Também já acho cansativa a conversa do direito à vida e da questão metafísica de quando ela começa, se é no momento da fecundação como diz a Igreja ou não. Há uma questão de ordem social incontornável, a verdade é q apesar de vivermos num país de tradição católica, os comportamentos sexuais e de reprodução laicizaram-se e existem muitos milhares de mulheres que recorrem ao aborto. E porque não a lei reflectir isso?

Para além da violencia do processo em si, a questão dos co-autores é mais um fardo que as mulheres carregam. Tenho a sensação de que as coisas têm vindo a estar menos mal. Sem certezas... mas a ideia que tenho é que apesar da maioria de homens que se destituem, também há um crescente número daqueles que falam das questões de reprodução com propriedade. Ajudem-me lá a pensar..
A minha experiência tem dos dois, benzó deus...!
E esperemos q não exista o Karma, como às vezes dizes oito e coisa, porque se não às mulheres que já abortaram esperem-nos no mínimo marrecas na próxima vida.

8 e coisa 9 e tal disse...

lagarto lagarto lagarto, que marrecas não dão jeito a ninguém...

o co-autor deste episódio disse-me que tinha um compromisso inadiável nesse dia e só me apareceu à noite, com um amigo que eu nunca tinha visto e ainda para mais bebado. Mais uma bela experiencia para juntar à festa!!

o que vale é que cada amiga vale mais que mil pais natais juntos!!

Mas concordo com tum tum, os homens não são todos iguais e apesar dos maus exemplos que já nos apareceram à frente, também conheço outros, bastantes outros, que assumem o que fazem com o seu corpo. E folgo muito em saber que o pirata também o assumiu, isso é que é ser um pirata com H grande

na prise és bestial disse...

querida oitoecoisa, parabéns pelo texto. Discursos panfletários de ambos os lados para o lixo, não há estômago nem cabeça que os aguente.

Anónimo disse...

Querida, também não tenho pachorra para discursos de panfleto e opúsculo, mas uma vez q os senhores deputados não fizeram o seu trabalho e por isso se inventou este referendo, penso que é importante discutir o que está em causa. Q se discuta o suficiente de ambos os lados para q as pessoas pensem no asunto e fiquem o mais esclarecidas possível.

Isabela Figueiredo disse...

Só para dizer que voltei para ler.