02 maio 2008

Hoje não quero ser eu

Hoje não quero ser eu, hoje não caibo em mim, hoje não tenho um lugar para mim neste mundo que comemora o dia do trabalhador. Hoje não quero ser mãe, não quero ser companheira, não quero ser filha. Hoje quero não ser, não estar, não existir. Devia pegar em mim, destruir-me e colar-me toda outra vez, numa nova vida, numa nova profissão, numa nova mentalidade, gostar de dinheiro, do poder, do sucesso, do luxo e do conforto, cagar para os males do mundo e reinventar-me em médica dentista como o meu pai sempre me disse. Passava o dia a dizer, abra a boquinha, um bocadinho mais, não vai doer, e monologava sobre as minhas férias à Índia e ao Nepal, comentando o exotismo daqueles povos tão estranhos e misteriosos e dizia, mas isso sim, não há nada como o nosso bacalhau, lá isso não, pronto pode bochechar, a minha secretária diz-lhe quanto é e marca-lhe a consulta para dentro de 15 dias, adeus, passe bem. Quando acabava o trabalho, ligava à babysitter do meu telemóvel bluetooth para que cuidasse os miúdos e ia no meu Audi jantar ao japonês mais caro da cidade. No final, passava por uma loja gourmet, via as novas colecções primavera verão e comprava mais um modelinho para o meu guarda-fato já a abarrotar e depois ia tomar um copo com amigos que discutiam inteligentemente os problemas do mundo sem nunca terem saído das suas vidas confortáveis, dizia mal do Sócrates e da política nacional e internacional, desdenhava o mundo e os utópicos, ria-me dos idealistas que se dizem de esquerda e encontrava defeitos em tudo para sentir-me ainda mais confortável com a minha vida. Era assim que eu devia ser aquela que não sou.

3 comentários:

nove e tal disse...

ainda bem que és como és e toma lá um abraço.

na prise és bestial disse...

mais outro abraço.
E entretanto consola-te porque ser dentista deve ser a coisa mais chata do mundo, ter de aturar bocas e dentes e gengivas e maus hálitos a toda a hora, gente apavorada, gente se encolhe e fecha os olhos a fingir que está ali, gente que acha que tu és a pior carrasca de todas as regiões habitadas do universo. Não há saquê que dissolva a estranheza de se ser dentista. Mais vale frilance cheia de dúvidas e angústias toda a vida
do que dentista por um só dia.

-pirata-vermelho- disse...

Porque é que declara que acha que deveria ser normalizada, comum?
Ou foi antes um acto compulsivo, como a necessidade de falar em Audi? Porque não Mercedes-Benz, que é muito muito melhor?
Ou Peugeot, cuja relação qualidade-preço também bate o Audi?


É que...
não consegui perceber aquela referência ao restaurante 'mais caro'.
'Mais caro'?! Assim dito, adjectivando, é apenas referência de 'gosto' comum, normalizado e não de conhecimento de qualidade.
Como o Audi e o resto...



(...e lá se vai o seu discurso de orgulho na diferença, mascarado de pergunta!)