16 maio 2008

Não quero ser velha

Não por causa das rugas ou das pilancas abanado ao compasso do Parkinson. Não por causa dos vestidos fora de moda e do cheiro a velho, que não sei porquê aparece no ar e ali fica, por mais perfumes ou janelas abertas. Não por causa da conta da farmácia ou de ter de tomar um comprimido de cada vez por causa da dentadura que não me deixa abrir a boca normalmente. Não por causa da morte ficar mais próxima. Acho que não tenho medo da morte. Pelo menos por enquanto.
Não quero ser velha porque não quero que a Joaquina da mercearia - a única que ainda me vai falando - ponha aquele tom agudo e estridente com que diz à D. Maria "deixe lá, não se apoquente, e agora vá descasar um bocadito, ande lá." Não quero que presumam que eu tive uma vida boa ou má, que sou surda, que preciso descansar ou que não me sinto humilhada quanto me tiram os trocos da carteira para pagar a conta porque já não vejo bem ou já não sei o que é o valor das coisas. Não quero que presumam que eu não sei que, quando sair, vão murmurar entre fregueses "coitadita... ", talvez até pensando nos seus próprios velhos mas esquecendo-os à saída.
Não quero obrigar-me a passar horas no café pelo triste consolo de, pelo menos, ver gente. Não quero a displicência e a arrogância de falarem comigo e de mim como não sendo mais do que um corpo encarquilhado que, um dia, já albergou uma pessoa. Como se, de facto, eu já não existisse mais. Como se já não tivesse o direito a pensar ou a sentir ou a apreciar uma companhia verdadeira, amorosa. Como se já não sonhasse ou pudesse ter outros desejos que não o de deixar de ser incontinente ou o de não cair desamparada na rua. Não deve haver forma pior de solidão.

6 comentários:

Anónimo disse...

Fez-me lembrar um livro que li do Phillip Roth aqui há tempo, com a diferença de o meter a um canto.. É que, sendo o tema semelhante, conseguiu de facto inquietar-me pela forma sublime como o escreveu! Gosto da sua escrita, são posts como "a brincar..." e "lição de fisiologia aplicada" que me fazem cá voltar. Parabéns por este blog fora de série!

Anónimo disse...

cá se fazem cá se pagam.

se não respeitamos os velhos enquanto novos, não seremos respeitados pelos novos quando velhos.

é aguentar... ou então, mudar.
se bem que seja muito mais fácil
queixar

sem-se-ver disse...

óptimo post.

não sei se é a pior forma de solidão, mas é com certeza a suprema forma de humilhação.

também eu não quero ser velha nunca.

(e tenho a vaga sensação de que já o sou algumas vezes)

-pirata-vermelho- disse...

Obrigado.
Escreva mais!
(qu'eu fico a dever mas um dia pago)

8 e coisa 9 e tal disse...

obrigada!! ainda não consegui libertar-me deste medo que me assolou...

sete e pico disse...

lindo, lindo, lindo.