Do cimo do meu telhado vê-se o mar.
Às vezes subo até lá na tentativa de acalmar um espirito turbulento que não reconheço ser meu mas que me habita.
De noite acompanha-me sempre um ser. Sempre.
Um ser que como uma mancha me abraça, fala comigo, ouve-me, deixa-me chorar e rir no seu colo.
Na sua mão, ou algo que identifico como uma mão tem uma laranja, redonda, cheirosa e pouco brilhante.
Nunca lhe pergunto por que tem sempre aquela laranja na mão. Às vezes sinto que há coisas que não se devem perguntar.
Ontem subi de novo ao telhado mas subi sozinha. Lá estava aquela mancha amiga.
Sentada, brincava com a sua laranja como uma criança perdida nos seu pensamentos.
Ontem fui ter com ela, não fui por mim e fui sozinha.
Sentei-me ao seu lado e ficamos em silêncio muito tempo. Encostei-me a ela um pouco e, como velhos amigos que somos, ficamos enroscados a contemplar o mar e os reflexos que a lua nova faz nele.
Perguntei-lhe - Porque tens sempre essa laranja? e ela disse -Esta laranja é tua! Deu-ma e eu recebi-a nas minhas mãos fechadas em concha.
A mancha levantou-se devagar como um velho muito velho que faz tudo lentamente porque a vida se vai acimentando nas suas costas e senti um carinho profundo no seu olhar, ou naquilo que identifico como olhar. E ela, a mancha, foi caminhando lânguida pelos telhados da cidade, com os seus passos largos, lentos, densos.
Ainda tenho a laranja debaixo da almofada...
Sinceramente não sei o que lhe fazer.
A luz do candeeiro aquecia a poltrona onde o corpo se afundava despejado de qualquer ideia sentimento ou desejo. Aquele corpo afundava-se todos os dias ao cair da noite quando deixava para trás as obrigaçoes do trabalho, a voz do chefe, o cronograma. Ficava vazio, só o chá lhe dava o calor que há muito tempo deixara de sentir. Um dia olhou para a flor que uma colega lhe tinha trazido e que tinha esquecida na mesa ao lado da chavéna de chá, pensou, um dia vou morrer como esta flor, morrer nao por ter vivido mas porque a deixaram morrer, um dia vou deixar-me morrer. E percebeu que era isso que desde há várias noites vinha fazendo, deixar-se morrer. Levantou-se, abriu as cortinas, abriu a porta da varanda e espreitou a lua tao próxima do seu décimo andar que dentro de 25 anos seria seu quando terminasse de pagar ao banco todas as hipotecas mais o euribor e o tae e o que entretanto se inventasse. Olhou a lua da sua varanda e voou até ela. Viveu intensamente todos aqueles imensos segundos até alcançar a lua nas pedras da calçada.