14 janeiro 2010

da importância de um salto


Ao contrário da maioria das pessoas eu tive três avós. A minha terceira avó era a minha vizinha do lado, era costureira e chamava-se dona brilhante. Ria muito e adorava dançar, fazia muitas viagens com grupos excursionistas de reformados, ia a bailes populares e era sempre a primeira a entrar na pista e a última a sair. Quando eu era miúda chamava-a tá, antes de passar definitivamente ao dona brilhante o que muito a desgostou e com toda a razão, só agora percebo porquê, às vezes quando somos crianças não nos damos conta da importância que o nosso afecto tem para as outras pessoas que nos são próximas, nem da importância que tem nas nossas vidas futuras o afecto que nos dedicam essas mesmas pessoas.

Sem a casa da dona brilhante eu nao seria a mesma pessoa que sou hoje, sem a sua cadeirinha de costureira com aquela gaveta por baixo com todos os rolos de linhas que eu ordenava por cores e tamanhos, sem esse espaço que ela me dava para poder ordenar as suas linhas e a minha cabeça, sem as histórias que ela me contava enquanto eu ordenava a gaveta ou aprendia infrutiferamente a costurar, a minha vida nao teria sido a mesma.

Ela falava-me de beijos, adorava que as pessoas se beijassem, o seu marido tinha morrido há muitos muitos anos, sempre foi uma mulher viúva desde que a minha memória alcança. Falava-me do amor entre mulheres, coisa em que eu nunca tinha pensado, as minhas outras avós eram todas puritanas, com um catolicismo só disfarçado pelas simpatias comunistas dos meus avôs e do meu pai, e, como nessa altura comunismo e catolicismo eram tidos como incompatíveis, eram mais reservadas na sua fé, ainda que mantivessem colados à pele todos os preconceitos que a igreja reserva para as pessoas que se enamoram de outras do seu mesmo sexo. A tá falou-me pela primeira vez do aborto, das fazedoras de anjos como ela chamava às mulheres que salvavam a outras de uma maternidade indesejada. Falava-me da minha bisavó que eu nunca conheci e das maldades da minha outra avó, falava-me de tudo e sobretudo, ouvia-me, e eu sabia que podia saltar sempre que quisesse o muro que separava a minha casa da sua, onde ela abrigava generosa e amorosamente a minha infância. 

3 comentários:

-pirata-vermelho- disse...

Você, cara múltipla, enriquece este espaço e dá-me prazeres inesperados com a sua escrita aparentemente simples.

Obrigado

8 e coisa 9 e tal disse...

muito obrigada caro pirata, soube-me bem o seu comentário

na prise és bestial disse...

a falta que uma tá me fez.