15 maio 2007

Probabilidades, verniz e casino

Um destes dias acordei com uma daquelas telhas que só uma ida ao cabeleireiro resolve. Assim foi: nesse sábado à tarde cheguei ao cabeleireiro - invulgarmente cheio - e pergunta-me a senhora solícita da recepção: 'então o que vai ser?'. 'Queria cortar o cabelo'. Voltei atrás e disse: 'ah, também queria arranjar as mãos, por favor'.

Atende-me um cabeleireiro brasileiro bem-disposto que me cortou e secou a melena em 2/3 meios tempos. Metade do trabalho estava feito. O pior foi a espera pela manicure. Se o corte tinha sido expedito, não entendia a razão de tanta delonga pelas unhas. Passado uma boa 1/2 hora de espera e já farta de me olhar ao espelho na contemplação do meu novo visual (vd. o que aconteceu a Narciso), decidi arriscar a pergunta à senhora da recepção, se demorava muito a manicure. Explicou-me então que aquele dia estava a ser particularmente complicado: para além dos clientes, também os funcionários tinham que se arranjar: iam participar numa gala de cabeleireiros no Casino do Estoril. 'Mas eu vou já ver quem está disponível, só um momento'.

Calha-me na rifa uma manicure mal encarada, visivelmente contrafeita com mais trabalho. Secamente, manda-me sentar e começo-lhe a tirar a pinta, enquanto vai sacando da sua mala os instrumentos de tortura. Loura, cabelo curto, olhos claros, uma pronúncia estranha, onde os 'erres' são enrolados e algumas vogais pronunciadas de forma aberta. De resto, quase não se dava pelo sotaque.

- O que quérrrrre fázerrrrrr?
- Bom, quero que me arranje as unhas...
- Sim, mas em formáto quadrrrrrado ou como é que é?
(ui, que simpatia, isto vai ser bonito, enquanto olho de esguelha para o alicate. Espero que não se vingue nas minhas pobres cutículas e me faça sangrar, que aí amofino-me e... e... Bom.)
- Quadrado, por favor. E depois quero que me pinte as unhas de encarnado.

Longos minutos de silêncio, enquanto me tira o verniz e me lima as unhas. Decido quebrar tanto mutismo e digo-lhe: 'então parece que hoje vai haver uma festa por aqui'. Olha para mim de soslaio e diz, 'sim, vamos tódos ao Cásino do Estórrril, vai haver uma gala lá'. Continuo a falar com ela, sem nunca arriscar a pergunta do seu país de origem. Deixo-a falar até que finalmente e por sua iniciativa me diz: 'sou rrrrrussa'. Quebra a secura e ri-se muito quando lhe digo: 'Russa? Não conheço nenhuma russa. Só conheço uma romena e tenho um vizinho búlgaro. Mas isso é a mesma coisa que dizer-lhe que conheço um alemão, uma espanhola ou um italiano'. Ufa, a ligação está estabelecida, as minhas cutículas fora de perigo. 'Então se é russa, deixe-me adivinhar o seu nome: chama-se Irina'. Levanta a cabeça e faz-me um daqueles olhares mortíferos outra vez (ai as cutículas!) e responde-me: 'não. Sou Svetlana'. 'Ok, Svetlana é um bonito nome' (e acho mesmo). Depois de decidido o tom escarlate e já fora do perigo cutículas (ufa!), começamos a falar da gala no Casino.

- Já lá foi alguma vez, Svetlana? Ao Casino do Estoril?
- Eu não. Só lá pássei uma vez mas nunca entrrrrei.
- Então vai ser a sua estreia num casino! Ou não?
- Sim, vai serrrr a minha estrrrrreia.
- E vai jogar? Por exemplo, há a roleta... As slot... (sou abruptamente interrompida por um quase-grito)
- EU??? Ná rrroleta??? (mais um olhar mortífero). Nunca na vida! Sábe porrrrquê? Vou-lhe explicárrrrr:

Fico, então, de boca aberta. É que Svetlana, justificando o facto de não jogar na roleta, dá-me uma longa e detalhada explicação sobre cálculo de probabilidades e estatística, capaz de envergonhar e fazer corar qualquer estudioso da matéria. Termina a explicação com um sorriso no canto da boca. Fico em silêncio, é que cromos daqueles para a troca, só mesmo a fórmula resolvente ou o teorema de pitágoras, os únicos que ainda sei de cor...

- Bom, já percebi que a roleta está fora de questão. Mas pode sempre jogar nas slot machines...
- Nás slots? O que é issu? Sáo aquelas máquinas q têm uma alávanca?
- Sim, aquilo é muito simples: só tem que pôr lá umas fichas e puxar a alavanca e ver se as combinações lhe dão algum prémio...
- E quanto é que custam essás fichas?
- Bom, tanto quanto me lembro, pode comprar o valor que quiser...
- Ah, 'tá bem. Também só ténhu 20 eurós e o meu marrrido disse-me: 'tens 20 euros, guarda esses 20 euros'.
- Sim, mas jogar uma vez na vida é engraçado, acho... (arrependo-me do que disse).
- Está, bem, logo se vê se comprrrro essas fichás.

Dá por concluído o trabalho, que executou com esmero e rapidez. Tenho umas unhas lindas e escarlates. Despeço-me de Svetlana e desejo-lhe uma noite divertida. Esboça um sorriso e acena-me num gesto seco. Vira-se para falar com uma colega.

Estou a pagar a conta e olho novamente para trás: vejo Svetlana de mãos nos bolsos ainda a conversar com a colega. Vou ao seu encontro e estendo-lhe uma nota: 'Tome, Svetlana. Jogue nas slots machines por si e por mim. Pode ser que lhe saia alguma coisa. Nunca se sabe'. Sorri e diz obrigada, sem perder a altivez. Antes de me ir embora arrisco a última pergunta:

- Svletlana, posso -lhe fazer uma pergunta?
- Sim, digá...
- Qual era a sua profissão na Rússia?
- A minha? (sorri). Engenheira Física.

Epílogo: os cabeleireiros, como tantos outros lugares, são o espelho do Portugal cada vez mais multicultural da ultima década. Pena que as competências destes novos imigrantes não sejam devidamente aproveitadas.

E no que toca a 'engenharia das unhas', Svetlana foi perfeita: tive as mãos lindas, com verniz sem lascar, durante 15 dias.

6 comentários:

Ruiva disse...

É em alturas como esta que eu penso F******!!!!!!!!!

O meu maior respeito para as pessoas como a Svetlana, como eu os entendo...

-pirata-vermelho- disse...

Sendo de salientar que o padrão/nível de competência de um engenheiro russo deverá estar de acordo com o nível tecnológico da sua (deles!) produção, é cómico (ou trágico?) ver portuguesitos dali da esquina a dizer que 'aquilo', a Rússia e arredores, é uma merda!
Esqueceram-se da Salyut, provavelmente...
e dos hábitos de trabalho que nós não temos. Provavelmente...

sem-se-ver disse...

svetlana é um nome lindíssimo.

de leste, só os engenheiros físicos e profissões afins têm posses para emigrar.

tudo isto é triste, mas é sabido há muito.

donde: de cada vez que olharmos para 'mais um desses emigrantes de lá', curvemo-nos à realidade estatística do fenómeno; e deixemos a sobranceria de país que acolhe beeeem longe, que nos fica MUITO mal.

obg por esta história.

Cool Mum disse...

:S

Filipe M. Reis disse...

de como uma uma pequena estória quotidiana e frívola ilustra melhor que mil ensaios académicos os tempos que vivemos.

na prise és bestial disse...

Não sei se serão apenas engenheiros físicos e afins que chegam cá; chegam também muitos operários, professores, contabilistas, agricultores. Sei que todos se endividam para poderem viajar até à Europa, somando mais umas centenas de euros às enormes dívidas que acumularam durante a década de 90. Sei que demoram muito tempo a pagar essas dívidas, sei que são explorados e maltratados pelos patrões (em portugal, espanha ou na conchichina).
Mas sei que não são diferentes de milhares de outros imigrantes que estão cá em Portugal, com terríveis histórias de solidão, abuso e medo.