01 maio 2007

A forma e o conteúdo

As manifestações do 1º de Maio entram-me pela janela adentro.
Há um bocado era a marcha pela avenida de roma fora até à alameda das universidades, agora oiço vagamente os discursos que botam, algures num palanque ou de uma camionete.
Vozes zangadas entram-me pela casa, oiço gritos de "a luta continua" e o inefável "cê gê tê pê, unidade sindical". Dos discursos apenas apanho o tom zangado e reivindicativo, das palavras apenas me chegam algumas frases finais que pedem que se continue a lutar pelos direitos dos trabalhadores.
Sinto-me numa viagem ao passado. As palavras, a forma de manifestação, os bombos, podia jurar que as pessoas também, são as mesmas de sempre. A realidade é que mudou e de que maneira.
Se quase todos os papões agora vêm acompanhados do prefixo neo, porque é que as manifestações e as palavras de ordem continuam a ser as mesmas? Porque é que não se consegue fazer uma neo-manif?
Claro que acredito no nosso dever de falar e de denunciar o que falta fazer. Uma sociedade civil inexistente é sinal de um país podre. Só me interrogo sobre o que acontecerá quando os que fizeram abril (como gostam de lembrar) já não estiverem cá; será que aí finalmente se poderá fazer diferente?
Acabam de passar o hino. Estranhamente não me chegam as vozes que o cantam nem o aplauso final.

10 comentários:

-pirata-vermelho- disse...

Qu'interessante reflexão.
Estranhamente... falta tanta coisa mais, não é?

Só encontro algum desacordo na expressão cristalizada 'sociedade civil' - é que ...
há outra!?
(que não seja a militar, claro; tradicionalmente,pois modernamente vai-se 'civilizando' cada vez mais)
Ao cunhar a expressão sociedade civil distingue-se (desresponsabiliza-se?) dela o subgrupo a quem essa distinção possa favorecer, não é?
Desresponsabilza-se!
Ora aí está...
alguns fabricantes deopiniãodestacaram-se da sociedade declarando-a 'civil'! Como se esses mesmos não o fossem -civis.

8 e coisa 9 e tal disse...

Falta imensa coisa pirata, mas menos do que às vezes parece.

Tem razão nessa coisa da sociedade civil; é uma expressão que se banalizou tanto que até eu (oh céus), uma multipla tão pouco banal (copo de três de água benta todas as manhãs) a uso. A partir de hoje acabou-se.

Anónimo disse...

"Só me interrogo sobre o que acontecerá quando os que fizeram abril (como gostam de lembrar) já não estiverem cá; será que aí finalmente se poderá fazer diferente?"

Ficaremos sós mais o Abril e o Maio e essa comandita toda.... Eu com 70 anos, sentado no mesmo sofá, vou buscar o cravo de plástico da ordem e marcho sozinho Av Rio de Janeiro abaixo, 100 metros entre minha casa e o Inatel. Os meu filho vai resgatar-me in extremis de ser atropelado pelo autocarro, porque já ninguém fecha o transito para a manif desde 2020... "Porra Pai deixa-te lá dos Abris, é todo os anos a mesma merda, ainda vais acabar em camisa de forças." Eu vou querer mandá-lo à merda mas entretanto esqueceu-me como...

PS: manyfaces is back from hell.

sete e pico disse...

manyfaces, ainda ontem estava a pensar que nunca mais tinha aparecido por aqui e que já estava com saudades virtuais suas. Espero que esteja regressado do hell para o paradise.

Quanto ao primeiro de maio, fico sempre numa ambivalência... por um lado acho importante a comemoração e gosto da manifestação, por outro também não consigo tapar o nariz ao bafio que dela emana, tirando este ano a excepção da marcha do precariado. Os movimentos sindicais precisam de uma grande reforma, o capitalismo precisa de uma ainda maior e eu, que me dedico tanto a pensar o mundo desde a conciliação entre o trabalho e as outras esferas da vida, não sei por onde começar a ajudar a que isto seja diferente. Sei reconhecer os bafios mas não consigo ajudar a refrescar o ar.

E nesta incerteza continuo a tentar compreender como defender o direito ao ócio, à partilha das tarefas domésticas, à redução da jornada laboral, etc, etc. ainda um dia vou acabar este tese, juro que vou. E talvez aí saia para a rua com cravos vermelhos na mão num qualquer dia de agosto.

8 e coisa 9 e tal disse...

Manyfaces grandes férias! Não me diga que foi ao saloon da outra múltipla?

O 1º de Maio nunca vai acabar, espero é que as manifs se actualizem um bocadinho.

Isto para não falar das do 25 de Abril; insisto em ir à av da liberdade, para acabar deprimidissima a ver desfilar o grupo de samba de vila nova da santa mais os resistentes bascos em lisboa, no meio dos cantares alentejanos e os arrefinfa o bombo. E depois chegar ao rossio e essa multidão desaparecer não sei para onde nem como, porque em frente ao palanque montado já quase sem pompa nem circunstância se amontoam uns capitães de abril mais os resistentes comunistas a falar das conquistas de 74, exactamente da mesma maneira que nos anos anteriores.

Quando alguém sugeriu o Ricardo Araujo Pereira para botar discurso (um neo-abril, que maravilha) logo as vozes comunistas se insurgiram, como eu aos 4 anos a ver teatro em repeat. "não´foi assim que fizemos nos anos anteriores!!" Ai de quem se atreva a alterar o estado das coisas. Resta-lhes o 25 de abril e o 1º de maio, se até isso lhes tiram o que é lhes fica?...

sete, eu também não sei que desumidificador é o mais adequado. mas o primeiro passo para a solução é reconhecer a existência do problema. Estamos no bom caminho, portanto. Pensar e agir. Estamos no nível 1, havemos de conseguir a chave para o 2, e daí é sempre a subir. por tentativa e erro.

Anónimo disse...

“Todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta Gente, Mariana. E ninguém vai fazer nada por nós”.

Maria Judite Carvalho
Tanta Gente Mariana
1959

8 e coisa 9 e tal disse...

ai homem, não me apoquente. Primeiro que regressa do inferno, agora silêncio e tanta gente.

Tome lá um cafuné e um piropo e não diga que vai daqui.

ora, um piropo, um piropo... ainda dizem que as flores não escrevem! (não é nova mas dá para o gasto, que eu cá n sou versada nestas coisas)

Anónimo disse...

passam agora setenta anos sobre dois acontecimentos de profundas consequências para os destinos do século XX. Em França, na sequência da vitória eleitoral da Frente Popular em Maio de 1936, a classe operária desencadeava um extraordinário movimento de greves de que viria a resultar a conquista das 40 horas semanais como horário normal de trabalho e, pela primeira vez na História, a garantia de duas semanas anuais de férias pagas. (O Militante , jul 06)

espera... isto é sempre a mesma coisa

este último grupo, dominado por Léon Blum, com o apoio de Paul Faure, acaba por aliar-se aos radicais. Ganham as eleições de Maio de 1936 e constituem a Frente Popular, surgindo um governo presidido por Léon Blum, que subscreve os Acordos de Matignon, consagrando o direito às férias e a semana das 40 horas. (Centro de Estudos do Pensamento Politico - ISCSP)

já tem mais categoria académica, mas ainda não é bem o que se pretende


as primeiras férias pagas, em 1936, no início da Frente Popular, em imagens de um humor sensual muito próximo do cinema de Jean Renoir, de quem ia então ser segundo assistente (até La Grande Illusion). (Expresso, 2001 - sobre Henri Cartier-Bresson)

ahhh... referência muito mais neo-retro, e chic!


com efeito, já quase todos estes "zangados, reivindicativos, barulhentos" (q'hórror) e não patriotas (o silêncio no hino, porque esse só se ouve bem alto e pujante nas grandes questões nacionais como o Europeu 2004) morreram, os ilustres com nome gravado na história e os imensos anónimos que levaram das boas para se ter direito a algo tão normal como férias, 40 horas - que precisamente por cheirarem a bafio, se neo-diz que está em desuso e não neo-"acrescentam valor à nova economia que carece de incrementos de produtividade e atitudes proactivas"-pós


a propósito de neo-pós-retro, quando meu avô tinha 11 anos e trabalhava na fábrica de louças de sacavém (1920s), os miudos faziam greve por tostões e levavam lambadas na cara, "cale-se seu reivindicativo e zangado fedelho", muitos neos depois, fala-se de trabalho infantil...

dilema... deveria ter falado disso sendo bafiento ?

no fundo, só sei uma coisa, quando os que fizeram Abril e Maio morrerem, ficarei mais só - e depois cabe-me a mim ser apelidado de bafiento.
Por isso, deixa-os ser assim (não falta muito tempo) e depois logo se vê como é que somos capazes de fazer o passo 2.


quanto ao passo 2, gostava mesmo que o neo fosse no sentido de celebrar e não de reivindicar (falta mesmo muito mais).


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Manyfaces, conta comigo para 2020 e seguintes...às 14:00 à porta do INATEL (se ainda houver tempos livres). será muito cedo, eu sei, mas nessa altura já não haverá nada para se fazer e, sobretudo o medo de se perder esse dia sobrepor-se-á a todas as racionalidades.

sete e pico disse...

à ganda neonerd, é sempre bom lembrar que as conquistas não cairam do céu e 70 anos é um tempo muito curto de história mas grande para conquistas. Também agora outra das conquistas que cada vez mais se fala é a da necessidade de estruturar o trabalho productivo de forma a que este não nos ocupe a vida toda e nos permita, a homens e mulheres em igualdade de condições, e de conciliar este trabalho com o trabalho de cuidado, com o ocio e com a participação política (a propósito disto descubri um documento espanhol muito interessante que recomendo em http://www.equalitaca.org/nuevaitaca/novedades/enlaces/49/documentotecnicoforo.pdf)

e já agora, o amigo que até é funcionário público, conte-me, será você um dos neoanónimos do sec XXI que utiliza o direito à jornada contínua para poder chegar mais cedo a casa e participar mais activamente no cuidado dos/as filhos/as?. Um recente estudo do Ina sobre este forma de conciliação revelou que ainda é um mecanismo muito pouco utilizado, em particular pelos homens, apesar de estar aí à disposição, só falta estar disponivel nas mentalidades e nas vontades.

Anónimo disse...

O 25 de Abril mato-o aqui e já (carta angustiada à geração dos meus Pais em dia de neura pós 1 de Maio)


Eu, nascido em 70, no meio de data nenhuma, ter agora de aturar isto.... Aos 4 anos andava eu de gatas lá em casa e cantavam vocês as revoluções na rua. E agora pedem-me que pegue no testemunho porque já vos falham as pernas para grandes caminhadas? Falam-me nas heranças de Abril? Pois fizestes Abril exactamente para quêm e para quê? Devo eu achar que herdei exactamente o quê? Eu por mim não quero mais manifestações em frente ao Inatel no 1º de Maio, não quero mais palavras de ordem que afinal não passaram de palavras sem ordem nenhuma. Que fizerem vocês dessas palavras? Que fizerem vocês deste Pais? Esbanjadas as palavras e o Pais passemos (nós e não vós) à fase seguinte. Não vos quero agradecer. Porque até o agradecimento pela liberdade e democracia me parece despropositado... Afinal foram tão poucos os que deram verdadeiramente o coiro por elas antes de 74... E mesmo entre esses gostaria eu de saber quantos não teriam preferido (tendo alguns tentado) ver instaurada por aqui uma "democracia popular". Agradecer terem esperado 50 anos para fazerem uma "não-revolução" ? O 25 de Abril foi um não-evento. Podemos chamar revolução a uma viagem de chaimite de Santarem a Lisboa para recolha dos restos putrefactos dum regime em decomposição avançada? Que raio chamaremos então às revoluções Americana e Francesa?
30 anos passados agradeçam a vós próprios as magníficas conquistas de Abril que vos garantirão paz e prosperidade na velhice. Porque vocês não inventaram um Pais, inventaram um estado à vossa medida(o que para efeitos de reforma antecipada foi bem mais conveniente). E trataram logo de criar um daqueles estados-vaca com muitas tetas, todas convenientemente formatadas ao jeito de uma geração que se colocou convenientemente debaixo delas. Mamei e multiplicai-vos. Assim fizeste durante 30 anos. No entretanto os vossos filhos tiveram o que vocês nunca tiveram, a carninha tenra do Lombo a todas as refeições, pelo menos enquanto vocês forem vivos. Porque depois ... Quando a geração grisalha acabar de gozar a sua reforma dourada conquistada aos 55 anos e seguir para outras pastagens, o que sobrará por aqui? Mestria suprema demonstrastes na gestão destes 30 anos. Revolução montada à medida do conforto paternalista, à medida do comodismo luso. Em versão Português suave para que ninguém ficasse verdadeiramente rico, nem verdadeiramente pobre, que o liberalismo é palavra feia que não se diz à mesa. Criastes nesta terra o reino dos "bem remediados pelo estado, graças a Deus"... E os vossos filhos saidos de casa aos 30 anos debaixo do conforto das vossa reformas, cama e roupinha lavada, licenciatura da treta tirada a ferros por imposição paterna, têm agora a casa para pagar e emprego de trabalho temporário nas televendas. Chegam a casa às 20h a tempo do beijo de boa noite ao filhote.