Espalhou-se em pedaços pelo chão da carpete verde escura daquela casa que cheirava a bafio, a doença, a velhice desatendida e a solidão. Tão depressa quanto a artrose, o reumatismo e a velhice lhe permitiam, apanhou cuidadosamente cada um daqueles pedaços, um por um, reuniu-os, limpou-os, e deixou que as memórias lhe assaltam-se intempestuosamente, lembrando cada um dos momentos da sua vida ao lado do marido já morto. Aquele busto daquele personagem que nunca soube quem era nem o que fez era a única lembrança física que guardava do seu marido, junto com o fraque do seu casamento. Recordava como se fosse hoje o dia em que ele o trouxe para casa e o colocou na sua mesa de cabeceira, ao lado da foto do dia do casamento, das fotos dos filhos e dos netos. O defunto olhava para ele com uma expressão estranha, parecia que lhe queria dizer qualquer coisa que nunca conseguia alcançar a garganta, ficavam-lhe as palavras presas na expressão do olhar perdido. Quando ao princípio lhe perguntava quem era o senhor daquela estátua dizia, não sei, e deixava o assunto morrer aí. Deixou de perguntar, habitou-se ao olhar perdido da estátua de pedra igual ao olhar do seu marido quando o olhava e depois a olhava a ela, interrogante e silencioso. Os netos riam-se cada vez que olhavam para o busto ao lado das suas fotografias, mas também eles nunca lhe disseram o motivo do seu riso. Hoje finalmente, tinha-se partido o objecto misterioso que a tinha acompanhado tantos anos, e uma sensação de liberdade, de estranha liberdade, percorreu-a dos pés à cabeça, aliviando as dores dos seus ossos e da sua alma. Tocaram à porta, era o seu vizinho octogenário que todos os dias a visitava, e que todos os dias sem excepção desde há dez anos, a convidava a dar um passeio de mãos dadas no parque do bairro, ao que ela sempre respondia, um dia Alberto, um dia. Reuniu os cacos da estátua de pedra, meteu-os num saco de plástico, pôs o seu chapéu de palha, abriu a porta e disse, estendendo-lhe a mão: Vamos, Alberto?
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