28 julho 2008

O busto de Napoleão - momento de ingenuidade

Não havia quem pela Praia da Zambujeira passasse que pudesse ignorar os figurões. Dona Tininha e o seu Napoleão eram um par de coqueluches desta terra com sabor a mar.

"Chamei-lhe assim porque mal o vi veio-me à ideia o busto de Napoleão que tenho em cima da mesinha de cabeceira. Percebi-lhe logo o carácter, a firmeza. Isso do tamanho não é o que importa, não!" prontificava-se a explicar a quem quer que questionasse o nome do bicho. E disso, do tamanho, parecia ela perceber bem. Dona Tininha pareceu sempre bem mais alta do que de facto era. Do cimo dos seus 60 e alguns anos, sobressaíam um peito forte e bronzeado que ela fazia questão de não esconder e umas pernas magras que, embora curtas, terminavam sempre em grandes saltos.

Já Napoleão não podia encontrar artefactos que lhe permitissem disfarçar o que era. Sobre as suas quatro patas andava rasteiro mas firme, como que ao som de uma batida sempre igual. E o pêlo esvoaçava, alvo e longo.

Durante anos o trajecto não enganava. Instalavam-se os dois na esplanada de sempre, ela com uma qualquer revista cor-de-rosa entre mãos e ele, aos pés.

"Olhe, diz que o Joaquim Almeida não quer trabalhar em Portugal. Pois que não trabalhe, não acha? Se nós não temos com o que lhe pagar... Esteja calado! Quer o quê? Queque ou bolo de arroz? Ó Paulinho, traz um bolo de arroz aqui para o Napoleão, trazes?"

Dirigira-se-lhe sempre na 3ª pessoa. Era "para corresponder ao respeito que ele impõe", dizia.

O Verão corria agitado e chuvoso. Napoleão começava a dar sinais de velhice e os sentidos começavam a falhar.

"Foi desafiado pelo catraio. Raios o partam, ao catraio! Correu atrás dele na brincadeira e..." A voz tolda-se e Dona Tininha recorre aos Dior castanhos escuros para esconder as lágrimas que teimam em saltar.
"Empalhe-se!" ordenou ao marido Joaquim.

E o empalhado Napoleão partilha hoje a mesa de cabeceira com o busto do outro. Sobre o naperon branco, escrita sobre papel reciclado, figura a inscrição:

"É necessário cometer amiúde algumas imprudências mas convém que sejam devidamente calculadas" Napoleão (o do busto).

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