13 junho 2009

No avião

Passada a excitação infantil dos primeiros tempos, andar de avião tornou-se apenas naquilo que é: a necessidade de transporte. Andava entre cá e lá, ali e além, com a calma inusitada da indiferença resignada. Era-lhe indiferente o handling, o atraso, a pontualidade, a carga, a requentada comida gelada. Como tinha aprendido num filme, “it´s beyond my control”.

O que sempre se manteve igual foi a repulsa perante o passageiro do lado. Não, não era bem repulsa. Seria, talvez, a tal indiferença. Ou, melhor, a necessidade de o seu mundo não ser sujeito a uma invasão bárbara pelo cotovelo, pé, baba ou ressono alheios. Odiava a indecisão da adormecida cabeça em tombar, ou não, em cima do seu ombro. Temia especialmente o cheiro, a mistura a suor com o “impulse-rosa-única-e-muito-muito!-doce-da-floresta-tropical” ou com o “axe-macho-latino-irresistivel”, entranhado nas orgulhosas fibras sintéticas!

Qual “Turista acidental”, sacava do seu livro de bolso, milimetricamente contado à dimensão da carteira. Em viagens maiores, quando a leitura se esgotava e a cafeína das horas de espera surtia efeito, encostava a cabeça e imaginava a vida alheia, espreitando a visão periférica. A imaginação era preguiçosa porque, afinal, eram todos iguais. Os pseudo-qualquer-coisa na primeira, na outra os iguais a tantos outros, os alternativos, os da moda, a tímida estudante ou o adolescente borbulhento, enfiado em indumentárias extraordinárias pelo preço que custam e pelo aspecto mendicante que têm.

Estava neste exercício quando, um dia, reparou nos simplórios no outro lado da coxia. Ela, peituda, atarracada, com o carrapicho das criadas de fora do século passado e o brinco com a inefável pedra vermelha (nunca a conseguiu associar a nenhuma pedra preciosa conhecida!). Ele, de camisa branca coçada de manga curta, impecavelmente vincada pela sua Dona, as calças do armazém da terra e o cinto carcomido na fivela de uma vida a uso. Os dois com as mãos grossas, rugosas, calejadas, com as alianças quase a provocar a gangrena no dedo do respeito. Olhou melhor para as mãos. Mais do que rudes, eram brutas, pesadas, maciças. E, sem um aviso ou uma palavra, elas procuraram-se. Deram-se uma à outra. Apertaram-se. Entrelaçaram-se com a força bruta de chave do outro. Percebeu que não eram eles que lhe eram indiferentes. Era ela que era indiferente para eles.