17 julho 2008

Com um brilhozinho nos olhos

Uma viagem, um companheiro de aventuras, uma múltipla para me acolher, Tom Waits a cantar para mim. O que poderia correr mal?

Pelo menos o avião. A viagem de ida foi tão má que dei por mim a fincar as unhas no antebraço do Jonas, enquanto tentava com dificuldade manter a postura de condessa russa no exílio. Enquanto pensava que se sobrevivesse voltaria para casa de comboio, umas lagrimitas escaparam-me inadvertidas, as malandras. Quando chegámos a terra firme tive vontade de fazer a minha Bento XVI impersonation, mas a condessa russa que vive cá dentro não deixou. E foi pena, as pessoas teriam decerto apreciado. Especialmente as que estavam prestes a embarcar no avião que eu estava com alegria a abandonar.

Enquanto o Tom cantava em San Sebastián passeávamos com a múltipla pelas Ramblas, Paseo de la Gracia, Parque Guell, Sagrada Familia e La Pedrera, comíamos tapas e bebíamos cañas. Gelados em Barceloneta, funicular até Mont Juic, a fonte de mercúrio do Calder na Fundação Miró. Era só para fazer tempo, claro, Barcelona é uma maçada.

Ficámos entusiasmados com a crítica ao concerto basco. Fascinante, formidável, indefinível, impactante, cúmplice, formoso foram alguns dos adjectivos usados para descrever o homem e o seu concerto, de resto o primeiro da tour europeia. As expectativas não podiam estar mais altas.
(Lemos que ele fez umas férias por Espanha com a família antes de começar a digressão. Terá entrado num cabeleireiro algures em Euskadi e pediu ao barbeiro de serviço Could you give me a Tom Waits hair cut? Não sabemos se a piada foi apreciada).

No dia do concerto démos uns passeios mais curtos, a preparar o corpo e a alma para o que nos aguardava essa noite. Chegámos ao auditório 1h3o antes do início, para reconhecimento do terreno. Já estava cheio de gente cujos olhos brilhavam tanto quanto os nossos. Entre os 30 e os 60, sentia-se o entusiasmo adolescente no ar. Encontrámos vários com o look camisa e chapéu displicente, uma espécie de cortejo de Elvis revival mas com pianos bêbedos em vez deles - uma visão um pouco insólita mas eles estavam felizes e convictos da sua escolha de guarda roupa, e nós demasiado excitados para nos importarmos. Estávamos todos ali unidos por uma força maior, a convicção de que em breve iríamos todos fazer parte de uma coisa magnífica e única.

O tempo passava devagar e depressa ao mesmo tempo. Fomos descobrir os nossos lugares, mas como quase todos os outros ficámos de pé a admirar o palco e os instrumentos durante imenso tempo, a gozar a antecipação. Eu de vez em quando dava uns gritinhos e uns espasmos descontrolados com os braços (a condessa deixa), o Jonas ria-se. Eu pedia desculpas (a condessa mandava), o Jonas dizia que também estava a sentir o frisson e eu deixava de me sentir parva. O Jonas é um cavalheiro, está visto.


Às 21h30 estávamos todos sentados nos nossos lugares, à espera. De vez em quando as pessoas aplaudiam, outra batiam com os pés e nada. De repente as luzes apagaram-se e o entusiasmo foi geral. Voltaram a acender-se e o burburinho deu lugar a uns urros indignados. Nós deixámos de falar e eu só fazia filmes de terror na minha cabeça, que o concerto tinha sido cancelado, que o homem estava de caganeira derivado às tortilhas estragadas ou dalgum calamar com óleo velho, o colon dá de si quando se começa a entrar na terceira idade.


Mas de repente


Foto daqui

Tem razão este quando fala da voz de taberneiro, um velhote afónico-aguardentoso que se mexe como um chimpazé, mas acho que o Tom Waits ia gostar de saber que acertou no alvo. Também este com a metáfora do parto da borboleta, por causa dos problemas com o som, que lhe distorcia a voz para além do que ele faz naturalmente e da demora no arranque do concerto, em vários sentidos.

Os músicos que o acompanharam eram irrepreensíveis - Larry Taylor (baixo), Patrick Warren (teclas), Omar Torrez (guitarra, magnífico), Vincent Henry (sopros) e Casey Waits, seu filho (bateria, da leva de 1985). Essa foi a noite em que fez estrear no palco o seu segundo filho Sullivan, 15 anos e a tremer entre os batuques e o clarinete.

Foi muito bom mas não foi mágico. Tirando a parte em que se sentou ao piano de cauda que o esperava na direita baixa, e acabou a derreter-nos todos com You can never hold back spring ou o Innocent when you dream. As suas palavras de sabedoria entre actuações, essas, ficam entre nós e ele. A paixão alimenta-se a pão do ló.

8 comentários:

sem-se-ver disse...

que belíssima reportagem.

Shyznogud disse...

também te odeio a ti, sabias?

Anónimo disse...

Odiamos, odiamos. O nosso ódio é universalista.

d. inês sequiosa disse...

querida oito, a menina já pensou em mudar de profissão? Diz que os jornalistas do Y são uns gandas chatos, acho que animarias o suplemento do Público. Ou, com tanto ódio por aqui, talvez ficasses bem com uma maçã na cabeça e as meninas do womenage a atirarem-te setas.

d. inês sequiosa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
8 e coisa 9 e tal disse...

ó D. Inês, se os do Y são uns granda chatos trabalhar lá deve ser uma grande chatice, fico-me por aqui. As meninas do womenage atiram setas com pontas de borracha, não se apoquente.

Sem se ver, isso de uma melómana soa bem, merci.

e às boazonas ménage e truá, eu gosto mais de amor e paz. Amor e PÁS!

dizia ela baixinho disse...

uma reportagem musical mais que MUITO bem esgalhada!

notei-te ali um pequeno oxímoro ("entre os 30 e os 60, sentia-se o entusiasmo adolescente no ar"), mas perdoo-te desta vez pela qualidade da tua prosa.

deixa lá as menageiras arderem no inferno da inveja.

e, sim, um comentário positivo da sem-se-ver só pode ser um GRANDE elogio.

besos!

Anónimo disse...

Que inveja !